PERDAS BÁSICAS EM RELAÇÃO À SEGURANÇA PSICOLÓGICA
Por Thomas J. Carrol

1. Perda da integridade física O primeiro sopro amargo, nas múltiplas limitações da cegueira, é a perda da integridade física, do todo. O indivíduo que cresceu e edificou sua vida, como um ser inteiro, global, é agora somente uma parte do mesmo, está fragmentado.
   Agora, aplicam-se a ele as palavras cruéis que marcam o indivíduo que não é inteiro: "mutilado" - "aleijado" - "atormentado" e a palavra que em si mesma está carregada de horror - "cego".

Seu medo tem a qualidade de um pesadelo. Com a perda de visão, aconteceu algo extenso e profundamente temido. Está diferente do que era antes e, o que é ainda pior, está diferente daqueles que o cercam, ele é um homem cego, num mundo que enxerga. Esta diferença física, em relação ao indivíduo "normal", é algo que se situa acima e além de todos os problemas da existência que ele terá que enfrentar.

Ele vinha lutando toda sua existência (de um modo ou de outro) para ser um membro de "dentro do grupo", ou, pelo menos, para ser respeitado; agora, ele se encontra empurrado para dentro de "fora do grupo" do que jamais escapará.

Seus sentimentos não se apresentam assim, de maneira tão clara, tão evidente. Freqüentemente eles surgem como terrores sem formas, como uma ansiedade que não pode ser descrita, como uma depressão sem base lógica.

Até onde seu pensamento consciente alcança, o indivíduo cego pode ter a certeza que a cegueira não o tornou essencialmente diferente, que as incapacidades físicas não significam o pior que poderia acontecer e assim por diante. Porém, seus sentimentos vêm das profundezas da sua inconsciência e recusam-se a abrigar-se, ante a lógica consciente.

E, emaranhados aos sentimentos do homem que perdeu a visão, encontram-se os sentimentos que ele abrigava em relação as pessoas cegas, quando ainda possuía sua visão. Se, durante sua vida de ser que enxergava, ele encarava os cegos como um grupo de criaturas misteriosas, se os julgava possuidores de certos poderes fantásticos e supersensoriais, se se sentia vagamente abalado na sua presença - como se sentirá agora?

Se ele pensava em criaturas cegas em termos dos vários estereótipos: o mendigo cego, o gênio cego, o músico cego - como serão seus sentimentos agora?
   E, se uma parte de seus sentimentos era devido a própria presença física de criaturas cegas, como se sentirá ele agora, com respeito a sua própria presença?

Se a cegueira física de um homem o levava a rejeição, à piedade ou a um estremecimento de repulsão, o que acontecerá com todos estes sentimentos, agora que ele também é um cego?

Muitas vezes a pessoa que acaba de perder a visão pode estar carregada de sentimentos especiais de amargura e ódio, devido ao tratamento que costumava dispensar às pessoas cegas, no passado, mesmo no que se referia a esmolas que dava ao mendigo cego, já que agora ele conhece os sentimentos que eles próprios nutriam.

Se, entre seus sentimentos de outrora, em face à cegueira, havia o de um profundo e oculto medo, agora ele tem razões de sobra para se perturbar. O medo da cegueira é um aspecto importante do instinto normal de autoconservação - indícios disto são os reflexos que protegem os olhos e o antigo ditado: "proteger como à menina dos olhos". Em relação à maioria das pessoas, tal medo é, em geral, desconhecido; algo do que devem envergonhar-se, e, portanto, profundamente sedimentado no inconsciente – já que dá origem à revolta e aquilo que comumente se denomina "piedade".

A pessoa que ficou cega pode também estar passando por uma experiência de sentimentos de culpa em face às atitudes tomadas em relação a indivíduos outrora cegos - ele os rejeitava; sua piedade era fraca e não levava a uma ajuda real; e pelas reações de repulsa com as quais ele se omitia dos problemas dos outros.
   Estes sentimentos de "diferença", de medo e de culpa, estão presos a muitos outros aspectos da cegueira, além, da perda da integridade física; porém, e aqui muito especialmente, eles vêm para confundir e aumentar o impacto da "realidade" da perda.

Contudo, deve-se recordar que sentimentos de depressão, confusão e diferença, não estão claramente ligados com uma única perda apenas; nem tão pouco tais sentimentos ocorrem exatamente da mesma maneira em todos os indivíduos que perderam a visão. Cada ser humano é único, pois tem sua própria auto-imagem verdadeira ou distorcida, seu retrato pessoal de "o que sou realmente". Parte desta "auto-imagem" é o que comumente se chama de "esquema corporal". Para a imagem corporal a perda da integridade física, a morte da visão pode ser um golpe devastador.

O adulto levou alguns anos para construir uma espécie de equilíbrio, tornando-se-lhe, então, possível viver com sua imagem corporal, aceitá-la e acreditar nela. Agora ele precisa, drasticamente, reestudar essa imagem. Seu corpo é um corpo cego e mutilado - um corpo sem janelas, anormal. Que acontecerá a todo seu equilíbrio, a todo seu método de ação?

Para tornar as coisas ainda piores à pessoa que perdeu a visão, nossa civilização tende a por ênfase muito especial no que concerne à perfeição física. A ênfase espiritual do velho judaísmo tinha a tendência de colocar a perfeição física num nível inferior. A expansão da civilização cristã levou a mesma ênfase espiritual a um setor mais extenso do mundo ocidental e, para esta amplificação, diminuiu a ênfase quanto às qualidades físicas e, com isto, o significado da privação física.

Nos nossos dias, dois fatores levaram, a reforçar a importância das qualidades físicas, aumentando assim a força do trauma das perdas físicas.

O primeiro destes foi o declínio da influência em nossa cultura da filosofia judaica-cristã. Com a filosofia materialista que a substituiu em nossa literatura sobreveio uma ênfase natural no ambiente humano - as coisas que nos cercam no decorrer da vida humana: saúde física, perfeição física, ausência de dor, vigor do corpo, conforto, etc...

O segundo fator é a propaganda, com análises cuidadosas dos desejos humanos, com o propósito confesso de explorá-los e seu emprego no meio das massas a fim de despertar nos seres toda espécie de ansiedade latentes em relação a si próprios, suas características físicas e sua aceitabilidade social.

Nosso recém-cego cresceu nesta atmosfera - respirou tudo isso nas conversas em sua casa, sentiu na ansiedade dos pais e mestres com respeito à sua saúde e aparência física que constituía um assunto dos bancos pré-escolares e das refeições à base de vitaminas e cereais. Ou viu em milhares de "slogans"; leu milhões de revistas e em anúncios de histórias em quadrinhos. Tudo girava em torno da importância do seu aperfeiçoamento físico.

E agora, não importa quais tenham sido suas perfeições ou imperfeições físicas anteriores - o seu, é um corpo cego.

Outro fator de suma importância nesta perda de integridade física é a possibilidade da criatura que ficou cega recentemente poder sentir uma certa insegurança, quanto à virilidade. Assim sendo, teremos uma outra espécie de morte.

Existe algo de feminino no mais forte e viril dos homens e algo de masculino na mais delicada e doce das mulheres. As crianças, porém, nada entendem disso! E a falta de conhecimentos traz insegurança a muitos meninos que descobrem em si algumas características "femininas" e em muitas que percebem algo que é "masculino".

Se nosso recém-cego é uma destas pessoas (não obstante a insegurança estar bem longe na infância que ele julga ter esquecido, e sendo mais viril dos homens) ele pode ter, neste setor, um grande choque emocional. Muitos psicólogos capazes e profundos nos advertem que (sendo que tais teorias podem ser aceitas ou rejeitadas sem com isto destruir a importância da perda da integridade física) qualquer perda física é encarada pelo inconsciente como um ataque na distinção entre os sexos. Observam, outrossim, que a vista, por alguma razão, se encontra relacionada mais intimamente, do que qualquer um dos outros órgãos dos sentidos, aos sentimentos que se relacionam com a virilidade ou feminilidade. A perda de uma vista, ou a perda do uso de uma vista, é conseqüentemente, e de modo especial, um impacto na distinção que nos faz homens ou mulheres - é, portanto, um grave choque na nossa segurança em relação ao próprio eu.

O recém-cego, a criatura que sofreu a mudança, pode, no ápice de seus próprios sentidos, tornar-se um impotente. Esta teoria talvez esclareça aquele vago sentimento de inquietação que a cegueira causa em quase todas as pessoas, os temores que a invadem, quando relacionamos a cegueira com nossas próprias pessoas.

Mais duas outras observações, de grandes psicólogos, profundos conhecedores do assunto, podem nos ajudar a melhor focalizar a importância deste capítulo. Contam-nos eles que, no inconsciente, alguém que perde a visão (e, por extensão, aquele que perde o uso da vista), está relacionado com a própria morte - que muitas vezes pesadelos em torno da cegueira são, na verdade, sonhos originados do medo da morte. Parece existir uma dificuldade ainda maior para com os indivíduos de língua inglesa. Neles, o inconsciente muitas vezes faz um ataque ao "eye" (olho), num ataque ao "I" (eu - pronome pessoal) que ele simboliza. Por conseguinte, dentro dos sentimentos, a perda da integridade física pode também ser a perda, a morte, de si mesmo.

Concluindo, é importante frisar que a compreensão da perda da integridade física raramente, ou se tanto, aparece ao indivíduo cego em toda sua extensão. Se assim fosse, seria muito mais fácil tratá-lo e, na maioria das vezes, a própria pessoa cega poderia enfrentá-la, rejeitando-a em lugar disso, ela pode surgir como temores vagos e em forma de sintomas que não têm uma ligação aparente com os sentimentos acima mencionados. E, a não ser que algo seja feito em relação a esses sentimentos não reconhecidos, toda espécie de sintomas físicos, morais e sociais podem transformar-se em outros padrões de mal-ajustamento ou pseudo-ajustamento.

2. Perda da confiança nos sentidos remanescentes. Talvez mais do que qualquer outra das perdas que compilamos, a perda da confiança nos sentidos remanescentes seja uma, cuja existência o público jamais suspeitou. Pelo contrário, o público está convencido de que, na ocorrência da cegueira, acontece um fenômeno geralmente chamado "compensação". Alguns o julgam "natural", outros, "divino". Raramente seu verdadeiro mecanismo é flagrante; porém, supõe-se que resulte numa agudeza maior dos demais sentidos, de uma maneira tal que os que enxergam não podem se aperceber. Assim, pois, já ouvimos falar no "sentido agudo da audição" dos cegos; do seu "extraordinário sentido do tato"; do seu "precioso" sentido do olfato ou paladar.

Se pretendemos compreender a cegueira e seus efeitos nas criaturas humanas, é importante que nos despojemos, imediatamente, destas noções (reconhecendo, entretanto, que ocorre um aumento de eficiência dos sentidos em algumas pessoas cegas e compreender qual o motivo de tal ocorrência).

Não somente os sentidos das pessoas cegas não é mais agudo do que daqueles que enxergam, como também, em alguns casos, é até mesmo deficiente.

Foram feitos testes sobre o tato, em número suficiente, em pessoas cegas e providas de visão, para poder provar que o sentido do tato de indivíduos do primeiro grupo (cegos) não é mais agudo do que os dos segundo grupo. Além disso, em nossos dias, muitos casos de cegueira são causados pela retinopatia diabética, encontrando-se em muitos destes pacientes, certas áreas táteis "anestesiadas" pelo progresso do próprio diabete - daí se deduzindo que o cego diabético pode ter o sentido do tato mais pobre do que muitos indivíduos do mesmo grupo de idade.

Audiogramas feitos em grupos de pessoas cegas e não cegas provam que tanto umas como outras estão sujeitas às mesmas áreas de perda de audição. Acontece, porém, que algumas causas da cegueira também afetam a audição a tal ponto que a pessoa cega pode ter deficiências no sentido da audição ou ser totalmente surda. Nesta categoria encontramos algumas doenças da meninge e aparentemente algumas das formas familiares das retinites pigmentosas.

Além disso, em nossos dias, quando predomina a cegueira nos grupos geriátricos, a mesma perda do sentido da audição existe tanto entre as pessoas cegas como entre as privadas de visão, dentro do mesmo grupo de idade ( por conseguinte, há mais perda de audição no grupo geral de pessoas cegas do que no grupo geral de indivíduos providos de visão, sem se considerar a idade).

Não há razão para crer que os testes feitos quanto aos sentidos do olfato e do paladar nos mostrariam algo de diferente. O fato é que um grupo de pessoas que ficaram cegas devido a certas causas neurológicas ou a certo tipo de moléstias, carece de todo sentido de olfato e de paladar. De maneira geral, os sentidos do olfato e do paladar do cego não são mais agudos do que os das pessoas que enxergam.

Além disso, o emprego de indivíduos usando vendas nos olhos, como grupos de controle em algumas experiências com pessoa cegas, experiências estas executadas pelos psicólogos C. E.C Seashore, Karl M. Dallenbach e Philip Worchel, parecem querer demonstrar que alguns indivíduos com visão apresentam maior habilidade no reconhecimento tátil e na localização de sons do que seus parceiros cegos.

A distinção entre a agudeza dos sentidos e a eficiência dos mesmos é muito importante aqui, tanto para o indivíduo cego como no campo da sua reabilitação.

É verdade que muitos cegos parecem ouvir coisas que nós não ouvimos, sentir odores que no sentimos, notar diferenças de paladar que não notamos e percebem coisas através de tato que não são percebidas por nós. Contudo, isto não é prova de que possuem sentidos mais "aguçados", nem compensações "naturais", divinas ou mágicas.
   O aumento na eficiência dos sentidos, onde pode ser encontrado, tem uma explicação dupla. É, em parte, o resultado da concentração (daí a razão pela qual muitas pessoas fecham os olhos a fim de melhor ouvirem uma sinfonia e o motivo pelo qual muitos de nós "ouvimos" mais sons quando apagamos as luzes à noite). Tudo isto resulta de treinamento (freqüentemente de um autotreinamento) e da experiência (como nos é demonstrado pela habilidade de certas pessoas que degustando um vinho são capazes de dizer sua casta e o buquê. Ou através do tato, determinar a qualidade de um tecido).

Os exércitos modernos treinam especialistas que podem interpretar áreas fotografadas. Seu treinamento permite-lhes determinar coisas nestas fotografias que nós não conseguiríamos "ver": - armazéns, zonas de abastecimento, construções que indicam um exército em atividade, etc. Nada há de especial quanto à agudeza do seu sentido de visão; é simplesmente uma questão de treino da observação. Não atribuímos a tais especialistas quaisquer poderes mágicos.

Da mesma forma, depois de algum tempo, muitos cegos aprendem a interpretar sons, odores, gostos e tatos de maneira mais eficiente do que o comum das pessoas. Isto, porém, não é fato geral entre os cegos e, se nos apegarmos teimosamente a tal idéia, e a idéia da "compensação" então estaremos colocando o cego numa área aparte, vaga e supersensorial. À medida que o trabalho em relação ao cego for influenciado por tais conceitos errôneos nós estaremos negligenciando o importante desenvolvimento do treinamento dos sentidos da pessoa cega e permitindo que esses conceitos se processem "naturalmente".

Não é, pois de se admirar que o público em geral, embuído destas falsas noções de "compensação" fique surpreso quando constatar que a cegueira recente pode ocasionar uma perda de confiança nos sentidos remanescentes. Esta perda de confiança não é o resultado da destruição atual do sentido da visão ou da função do sentido da visão, que, como já foi mencionado, é causada por certas moléstias ou acidentes. Entretanto, á uma condição, encontrada em maior ou menor grau em muitos cegos recentes (cuja duração pode ser maior ou menor), que dificulta ou torna impossível para os desprovidos de visão, acreditarem naquilo que os sentidos remanescentes lhes podem transmitir. O impacto decorrente de tal perda não é igual para todas as pessoas; para algumas, misericordiosamente, é breve. Dependendo, porém, da sua duração, o indivíduo que recentemente perdeu a visão, fica, também, privado dos outros sentidos.

Para melhor compreendermos a razão desta perda, precisamos reconhecer a que ponto dependemos da visão, como censor ou testador das informações captadas pelos outros sentidos para adicioná-los às informações que nos são trazidas por um dos sentidos a fim de testar e validar esta informação. Mais do que com qualquer outro sentido fazemos isso através da visão.

Quando não é mais possível ver, então, para muitas pessoas, acreditar torna-se difícil, se não impossível - adquirem uma tendência a desconfiar das informações colhidas através de outros sentidos e suspeitam da sua validade. Isto não deve ser considerado como uma dúvida intelectual e sim, como um "sentido de desconfiança", provavelmente devido a algum distúrbio dentro do padrão do "sentido central" que permanece, enquanto uma espécie de reorganização dos sentidos é realizada. Este distúrbio assume maiores proporções quando escapa ao controle do intelecto e à insegurança que desperta, origina então um estado de pânico.

Consideremos a maneira pela qual nos utilizamos da visão para testar informações obtidas através de um ou outro dos sentidos. - O SENTIDO DA AUDIÇÃO - traz-nos uma grande parte de nossas informações a respeito do mundo que nos cerca. Não obstante, testamos tal informação através do censor - a visão. O rápido girar da cabeça - o gesto automático que faz com que voltemos os olhos em direção à fonte do ruído, a pergunta que acompanha o gesto: "Que foi isto?" - tudo indica como é automática esta tendência para testar. Mesmo os sons mais familiares nos compelem a olhar, para nos "certificarmos" da sua causa e da sua importância. - O SENTIDO DO TÁTO - Nosso bolso ou carteira contém algumas moedas. Pelo tato podemos identifica-las, sem dificuldade. No entanto,automaticamente, inconscientemente (até mesmo compulsivamente) lançamo-lhes um olhar "para ter certeza". Acontece também tocarmos com os dedos o lado de uma panela com água fervendo; retiramos a mão quando sentimos o calor e em seguida levantamos a tampa e vemos as bolhas familiares da fervura que ajudarão a "confirmar a verdade". - O SENTIDO DO OLFATO - "Feche os olhos e sinta só que perfume" alguém nos diz e obedecemos. "Violetas!". Estamos mais do que certos. Abrimos os olhos e "realmente" são violetas. O SENTIDO DO PALADAR - Nem todos os fumantes seriam bem sucedidos com uma venda nos olhos. Podemos, no entanto dizer, e com certeza, o gosto da fumaça, o gosto do ar. Então, qual a razão do reflexo automático que, após uma inalação profunda, nos leva a olhar, para ver se o cigarro está aceso? Simplesmente porque a visão é o censor nas informações positivas e negativas que nos foram trazidas pelo sentido do paladar.

Ao lado dos assim chamados "sentidos principais", há uma longa lista de outros sentidos muito discutidos nos nossos dias. Dois deles parecem exigir uma atenção toda especial. - O SENTIDO DO EQUILÍBRIO - Caso a sensibilidade vestibular seja normal, nosso equilíbrio não necessitará de depender da visão. Entretanto, num quarto completamente às escuras, num dado momento a maioria das pessoas é capaz de imaginar que talvez não esteja em posição erecta e a única confirmação consiste em acender as luzes. Ora, fechando os olhos durante algum tempo, é possível começar a perder o equilíbrio e para recuperá-lo, precisamos abrir os olhos e nos orientarmos com o emprego da visão. Também este sentido passa pela censura da visão.

- O SENTIDO DA MEMÓRIA-MOTORA - (ou "memória muscular") - Seu papel é importante; usando-o em lugar da visão quase qualquer pessoa pode subir e descer escadas em sua casa, sem necessidade de olhar o primeiro ou o último degrau. Entretanto, apague a luz e apresse-a a subir ou a descer a escada – ela se sente perdida – a memória motora fica completamente esgotada. Afastando o uso da visão, nossa confiança na memória motora desaparece.

De tais exemplos nos é fácil deduzir que algo é de se esperar que aconteça à confiança nos sentidos remanescentes, quando desaparecer o sentido da visão.

O que realmente acontece, difere de pessoa para pessoa e difere grandemente, de acordo com os motivos que levaram à perda da visão. Aquele que a perde, aos poucos, durante um longo período de tempo pode, efetivamente, atravessar um longo período de tempo de reorientação no caminho que leva à censura da informação dos sentidos.

Contudo, durante esse período podem surgir dificuldades ocasionais com esta perda e elas são tão difíceis de serem reconhecidas pelo que são, que o indivíduo pode sentir graves suspeitas a seu respeito e à sua sanidade mental, necessitando por isso uma explicação clara.

No caso de cegueira recente, repentina, tal perda pode se constituir num fator grave, causando estado de choque, contribuindo durante muito tempo para a insegurança da pessoa, com respeito a si mesma. Para alguns, a experiência será traumatizante, causando experiências alucinatórias que se tornarão mais compreensíveis à medida que formos estudando as novas perdas. De qualquer maneira, a depreciação da verdade na informação trazida diretamente através dos sentidos remanescentes, pode ser um fator muito grave. Arremessa com o recém-cego contra duas fontes de informações dignas de crédito: o que ele aprendeu antes da perda da visão e as coisas que aprende por intermédio de outros, ou seja, a memória e a confiança humana. Aqui reside, pois uma área séria de dependência e nesta mesma dependência ele é de certa forma despojado das pessoas das quais depende.

Esta perda, principalmente durante o estado de choque da cegueira recente, é uma perda arrasadora, porque deixa o atingido completamente sem apoio. Remove-o para além de um mundo que fica em volta dele e torna mais remotas as possibilidades de uma reabilitação.

3. Perda do contato real com o meio ambiente. A perda do contato com a realidade, da "realidade do contato" com o mundo tangível no qual vivemos, é algo que facilmente leva ao pânico, ou que agrava ainda mais o entorpecimento do estado de choque. É uma "morte" remota, para o mundo das coisas que estão a nossa volta.

Para aqueles que sabem que o contato com a realidade é uma medida de sanidade mental, isto pode parecer que o cago perde essa sanidade. Não. Antes diríamos que o mundo da sanidade mental está mais difícil de se agarrar a ele. O contato com a realidade é um dos pontos de diferenciação entre a neurose e a psicose. E nesta perda, parte-se em importante vínculo com a realidade.
   É possível que o significado deste aspecto se torne mais claro, se atentarmos às perguntas que, normalmente, um psiquiatra faz às pessoas suspeitas de "desorientação": "Quem é você?" "Quem sou eu?" "Onde você se encontra?" "Quem são essas pessoas que a rodeiam?" "Que faz você aqui?" "Há quanto tempo se encontra aqui?".
   Não nos detendo na primeira pergunta (recordado os choques ao "eu" sofridos pela criatura que recentemente perdeu a visão) procure você mesmo qual o sentido que seria mais importante na resposta que daria às outras perguntas. Para poder responder com segurança, a pelo menos quatro ou cinco das perguntas, a média das pessoas que enxergam teria que depender grandemente da visão.

Quanto à orientação no meio ambiente, tanto as cinestesias como a sensação vestibular são importantes; mas a visão, acima de tudo, é que me fixa quanto às minhas relações com o que me cerca. É ela que me relaciona com o que está à minha direita e à minha esquerda, com o que está acima e abaixo, em frente e atrás. A visão não apenas identifica estas coisas; ela me centraliza no seu meio.

O sentido da audição é um auxílio. Os sons são coisas sem corpo - ele mudam, movem-se, escoam; eles se filtram sem um foco. Não possuem a agudeza da localização da visão. Tanto o olfato como o paladar são de pequena valia para a criatura que enxerga; não possuem a agudeza de localização, eles penetram, tornam-se confusos. Já o tato é mais concreto; é o sentido do "tangível". Não obstante, o tato pode falhar. O tato nos prende somente a uma pequena fração da realidade - uma fração, facilmente mal identificada. É tão fácil que as coisas "tocadas" se "movam", que o mundo tão sólido pareça flutuar, basta apenas que por um momento eu afrouxe o meu "agarrar-me" à realidade.

Assim, pois, para aqueles que cresceram com o uso da visão, ela é o grande sentido de contato com o mundo concreto das coisas e como elas se apresentam. Porque a visão também "toca" - alcança prende; agarra; fixa, açambarca. A visão ao alcance do que me cerca e que meu corpo não consegue tocar - ela amplia meu sentido do tato; ela "me" amplia e, assim fazendo, me proporciona um lugar estável e fixo, já que percebe todas as coisas em relação a minha posição central. Os demais sentidos são, por vezes, nebulosos. A visão é "real", a visão é concreta.

Agora podemos avaliar o que a visão significa para a orientação no meio ambiente.

A estabilidade da orientação é de muita importância para a segurança. Ao lado dos fatores somáticos, isto pode ser a principal na desorientação que envolve a "psicose da catarata senil" (também chamada de "psicose da máscara negra"). Sob condições operatórias dos nossos dias esta condição é menos encontrada do que nas últimas décadas e é rapidamente curada.

É bastante o médico mandar remover as bandagens dos olhos e o contato com o meio ambiente é restaurado. O mesmo porém não se dá com a cegueira recente, com a mesma facilidade. Aqui reside, pois, a terrificante natureza desta perda do contrato real com o meio ambiente. Este sério e dos mais importantes laços com a realidade do mundo é uma espécie de morrer para as coisas em nosso derredor – e um dos mais apavorantes aspectos de vários traumas da cegueira.

4. Perda do campo visual. A perda discutida nos parágrafos anteriores foi a do objeto; agora trataremos da perda do campo onde esse objeto se encontra. Consideramos até então o horror de olhar para algo que "não se encontra mais ali" - este parágrafo se relaciona com o vazio e solidão daquilo que poderia ser chamado de "silêncio visual". A fim de que possamos compreender tal perda, é mister que se considere o papel importante que o campo visual tem, constantemente, em nossas vidas, como um fundo de mudanças plácidas e caleidoscópicas, como que uma espécie de um "acompanhamento de orquestra" visual, em relação aos acontecimentos ou à monotonia da nossa rotina diária. É comparável a um recinto de auditório de nossas vidas, e sua perda, relega o homem surdo a uma monotonia de calma, na qual somente as coisas silentes são vistas.

Andamos por uma rua; tomamos um ônibus; estamos sentados na nossa sala de estar; encontramo-nos conversando no saguão de um hotel repleto de gente. Supostamente não vemos nada além daquilo em que nos concentramos. Entretanto, subconscientemente, nossos olhos e nosso pensamento estão "vendo"; eles fotografam e rejeitam; fotografam para memorizar; fotografam para um uso imediato, absorvendo todo um mundo de cores e de contrastes, de movimento e repouso, de luz e sombra, de criaturas e coisas, de formas, texturas, figuras que se encontram em redor de nós. Conversamos com alguém e assim fazendo "concentramos" todo fundo panorâmico, no qual o estamos vendo. E, todavia, dentro de nós mesmos - nós estamos vendo esse alguém dentro daquele ambiente, daquele fundo panorâmico.

Ainda que se trate de um reflexo inconsciente, como o bater das pestanas, esta atividade fotográfica tem a função de nos proteger contra o perigo. Até mesmo o passar de uma sombra pode, rapidamente, nos alertar, colocando-nos em posição de guarda contra acidentes reais ou imaginários.

Tem também a função, mencionada em conexão com a perda anterior porém aqui conduzida menos conscientemente, de nos conservar em contato com o mundo que nos cerca.

Estamos sempre agindo, não somente pondo os outros num certo fundo panorâmico, mas também nos colocamos na cena - nós nos orientamos dentro do nosso meio ambiente, porém "totalmente despercebidos" do nosso papel. Entretanto, se chegarmos ao ponto desta desatenção se tornar realmente total, depois do nosso "chegar a", nosso "escapar da cena" seria acompanhado de um pânico real - de tal forma esta orientação visual é parte de nós mesmos.

Do mesmo modo, enquanto estamos atentos a outras coisas, esta percepção do campo visual é uma forma de recreação para nós, quase que de recreação inconsciente.

No caso, por exemplo, de ter havido uma mudança visual no ambiente do meu escritório, durante o dia. Quando comecei a trabalhar, a luz direta do sol não se mostrava de um lado - agora ela cai sobre a metade da minha mesa. No decorrer da manhã, o calor subindo da calefação atrás de mim, fez surgirem delicados movimentos ascendentes dos raios do sol que convergem sobre o assoalho e a mesa. Uma árvore projetou sua sombra movediça na sala, ondulante, até que uma rajada de vento a imobilizou por algum tempo. As sombras e as luzes da sala, seu mobiliário, seus quadros - todas estas formas e cores adquiriram incontáveis e novas relações entre si. Formas e texturas ganharam novas sutilezas, que vieram e se foram; as cores receberam inúmeras nuances que duraram por momentos. Eu "vi" tudo isso, embora não as tivesse "visto" ativamente.

Tal é o mundo visual, mutável, no qual vivemos. Distrações, divertimentos, mudanças, tudo isso nos protege contra a monotonia (como também a recreação) refrescando nosso espírito e nossas forças, não somente depois, mas também durante as ocupações e o trabalho.

Esta percepção do campo visual pode, outrossim, auxiliar-nos na experimentação de um certo prazer cinestésico - embora sem ser uma atividade plenamente consciente - o prazer não somente de movimento musculares e movimentação no espaço, mas de movimentação reconhecida visualmente, movimentação vista contra um fundo de não-movimentação.

Há também aquela maravilha que os físicos denominam friamente de "paralax" e através do qual nós emprestamos movimentos a um aspecto do mundo feito de objetos sem vida, proporcionando vida ao inanimado. Observadas através de um trem em movimento, muitas coisas se movem na mesma direção que você segue e os objetos, que estão mais próximos, movem-se atrás de você e em direção oposta e ocorrem milhares de combinações de velocidade e rapidez, animando objetos sem vida, entrelaçando-se com eles. Mas você não precisa de um trem, pois o processo esta sempre se repetindo. Segure um objeto - um cigarro, um lápis - para a parede distante e movimente sua cabeça primeiro à direita e depois à esquerda; o objeto move-se para fora de seu movimento e a parede distante move-se com você. Tal fato sempre acontece quando você se desloca e você sempre o interpreta com parte da percepção do campo visual.

Estes são alguns dos valores que a percepção do campo visual nos proporciona. Sua perda deixa a pessoa que perde a visão num vazio visual, um vácuo no qual ela está morta para as mudanças, cores, formas que se movem e para o campo visual onde existe o mundo das criaturas humanas.


   5. Perda da segurança luminosa.

Falar da cegueira como da "perda da luz" é incorreto e prejudicial para a pessoa cega. Não obstante, muitas são as razões que levam a crer que há uma perda da "segurança luminosa", que em muitos casos faz parte do impacto da cegueira. A fim de se avaliar esta perda precisamos em primeiro lugar compreender o horror que existe em se pensar na cegueira como perda da luz e o mal que tal conceito produziu e ainda produz no cego.

De uma maneira ou de outra, o público em geral aplica (ou é encorajado a aplicar) analogias de luz e escuridão às condições de visão e cegueira. Refere-se continuamente às "vidas escuras" das criaturas cegas; fala-se em levar a "luz" aos cegos; mencionam- se os cegos "sentados na escuridão". As associações para cegos são denominadas: "Faróis de Luz". Entretanto, tais analogias podem se constituir em graves barreiras, tanto para compreensão da cegueira como para aceitação do cego na sociedade.

É fácil de se compreender que as criaturas dotadas de visão podem apresentar tais analogias. Quando a luz está ausente, não somos capazes de ver; de certa foram estamos cegos. Tal espécie de "cegueira" está dentro da nossa experiência desconhecida da verdadeira cegueira. Tivemos a experiência oposta de, por instantes, nos termos "cegado" pela profusão da luz. Entretanto, jamais fazemos tal analogia. Nunca pensamos na cegueira em termos de saturação da luz - e sim, por falta da mesma. E por que?

A luz é o meio da visão. Não é a própria visão. Se o meio está ausente ou se está presente numa quantidade exagerada, não nos podemos utilizar dele - não conseguimos ver. O meio não é o sentido; luz não é a visão.
   Do ponto de vista da ciência óptica, a analogia, entre a escuridão e a cegueira não seria tão má – já que certamente ninguém consegue ver sem luz. Entretanto, do ponto de vista mais amplo, da oftalmologia e na opinião dos psicólogos e sociólogos, tal comparação só pode agravar a compreensão do significado da cegueira.

Vejamos, inicialmente, porque a analogia é incorreta. A maior parte das pessoas "cegas", de acordo com a definição de cegueira, agora aceita nos Estados Unidos, vê bastante claramente a luz; alguns podem até mesmos ler as manchetes dos jornais, sendo que outros conseguem identificar objetos à distância. Portanto, a grande parte daqueles que são clientes das nossas associações de "luz" para cegos, podem ver a luz. Alguns chegar a ver tanta luz que não sabem o que fazer com ela; estão saturados de luz. Não existem estatísticas que nos dê o número exato, mas nós nos surpreenderíamos ao saber que mais de uma pessoa entre trinta da nossa população de cegos não chega a ser tão cega que não possa distinguir a luz (dez mil em mais de trezentos mil).

Além disso, de acordo com a mais restrita e popular definição de cego, isto é, aquele que "não pode ver", muitos dos que são cegos ainda poderiam distinguir entre luz e escuridão. Tais indivíduos são, obviamente cegos, porém não são desprovidos de luz. O indivíduo que tem a percepção da luz ou mesmo a projeção da luz e, é óbvio, aquele que pode distinguir, embora vagamente, formas que se movem, não é desprovido da luz. Não obstante, qualquer um destes é "cego", na definição comum do sentido do termo.

Outrossim, indivíduos que não possuem a percepção de luz têm, apesar disso, uma visão extensa das cores - não a percepção de cores do lado de fora do olho (o que também é possível para alguns "cegos"), mas as cores flutuantes que se originam de mudanças dentro do olho ou do sistema ocular. Tal fenômeno não é tão raro a ponto de ser considerado como caso excepcional.
   Pois, muitas pessoas que não podem receber qualquer luz, seja ela qual for, através do sistema ocular (como no caso de pessoas cujos olhos foram removidos), freqüentemente vem cores, até cores caleidoscópicas, durante um longo período em que estão acordadas. Não se trata de um sistema alucinatório, mas de algo muito real que é visto. Para se compreender tal fenômeno precisamos recordar o fato de que o estímulo do nervo óptico, como, por exemplo, uma pancada na cabeça, pode nos fazer "ver estrelas". Em algumas formas de cegueira, este estímulo ocorre de maneira freqüente e permite que o cego viva num mundo de luz e de cores.

Certamente não estamos procurando dar a impressão de que tais experiências de cor e luz sejam constantes e totalmente agradáveis. Pelo contrário, podem ser perturbadoras, especialmente se o indivíduo cego não as compreender. Porém, em todo caso, proporciona a muitos indivíduos cegos um mundo de cor e de luz bastante diferente, da noção popular do "mundo sem luz" em que se supõe que o cego vive.

Isto, porém, não inclui aquele número de pessoas cegas totalmente desprovidos da penetração da luz e que não possuem experiência alguma quanto a sensações de cor e luz, das quais falamos até agora. Seria, então, a condição destes cegos, aquela que poderia ser descrita como desprovidos da luz? Além disso, podemos dizer que vivem "na escuridão?". Para ambas as perguntas a resposta é não!

Eles estão desprovidos da visão e nisto consiste sua cegueira. Estão também desprovidos da luz, mas não se encontram na escuridão, no sentido popular da palavra, significando algo com qualidades positivas: "A noite era negra!" "A escuridão era tão densa que poderia ser cortada com uma faca", etc.

Cutsforth e Chevigny , os dois escritores cegos que mais contribuíram neste setor, insistem no fato de que a ausência da luz não significa uma advertência à escuridão. Apontam o erro de muitos escritores que tratam da cegueira em suas obras e que fazem da escuridão algo de positivo, uma realidade tangível. Ambos chamam a atenção ao fenômeno conhecido pelos físicos como "adaptação ao escuro". Com visão, ou sem ela, podemos chegar a esta "adaptação ao escuro". Depois de ficar mos por um certo tempo no escuro, a escuridão não é totalmente negra, como acontece quando apagamos as luzes, de repente, e sim, teremos um ambiente cinza neutro. Geldard diz: "... a experiência de se olhar para o "negro" físico não é negro, nem tampouco é negra a falta de sensação. Talvez devido a processos autônomos, que se processam no cérebro, uma pessoa dentro de um quarto escuro, não fica negra e sim cinza ou cinza-purpúreo. Algumas vezes isto é chamado de "cérebro cinzento" ou "autoluminosidade da retina". Parece que o cinza pode ser um processo constante no panorama e que todo estímulo precisa "atravessá-lo" ou talvez "modulá-lo", para que se processe uma experiência da qualidade visual".

Todos nós já passamos pela experiência de acordar no meio da noite num quarto cujas luzes foram completamente apagadas – gradualmente temos a sensação de que podemos ver sombras naquela escuridão cinzenta. Experiências executadas em cavernas sem luz demonstraram que com a "adaptação ao escuro" há uma perda do sentido de uma escuridão positiva com a qual iniciamos a experiência. Cutsforth fala de "um campo visual tão livre de uma experiência escura, que parecia que os objetos podiam ser distinguíveis".

Cabe-nos até mesmo dizer que após a adaptação ao escuro, a experiência não é tanto da "escuridão" mas do reconhecimento na falta de luz, sendo a primeira uma qualidade da obscuridade que penetra e a segunda uma realidade física.

Então, é óbvio que a analogia que coloca a visão e a luz no mesmo plano, ou, de outro lado, a cegueira e a escuridão, é positivamente errada e mais do que isso, gravemente prejudicial ao cego, uma barreira para sua aceitação na sociedade. Usam-se como símbolos da visão e da cegueira dois fatores que são básicos para a humanidade e, assim agindo, dá-se à cegueira um significado simbólico que não deveria ter (e que os técnicos especializados seriam os últimos a aceitar).

A LUZ, tanto na opinião da humanidade primitiva como da civilizada, está ligada às idéias de verdade, beleza e bondade - "realidade física transcendental". É sabedoria, esperança e amor. A teologia e a piedade cristãs, particularmente entre os grandes teólogos orientais, mas também no termo analogamente, não somente em relação à bondade, graça e céu, mas também para a glória do próprio Deus.

A ESCURIDÃO por outro lado, a negação da luz, tornou-se o símbolo da ignorância, do erro, da feiúra, do mal, do desespero e do ódio. A escuridão torna-se obscuridade, negrume, noite sem fim, a "sombra da morte" e até mesmo a própria morte. A hora da escuridão, o período da noite, foi tradicionalmente concebido e aceito como propício às conspirações, ódio, crimes, pecado. A escuridão é misteriosa e horrenda, e o poder de Satanás é conhecido como o "poder das trevas".

Tais são os significados de luz e escuridão em relação às emoções humanas - não somente as dos homens primitivos como também dos civilizados, mas, variando em graus, tons, formatos e compreensão da própria humanidade. Não apenas do homem que vê, mas também daquele que é cego. Conseqüentemente, enquanto relacionarmos cegueira com a escuridão relacionamo-la com a escuridão física (a ausência ou negação da luz física) e com as conotações da "escuridão". Assim fazendo, não impedimos que se erga uma barreira intransponível quanto à total aceitação do cego dentro de sua própria posição na sociedade daqueles que são providos da visão. Sendo esta analogia tão prejudicial à compreensão da cegueira e dos cegos, não é paradoxal, até mesmo irônico, ter sido ela imposta na consciência do público, tanto por aqueles que dão suas vidas pelo trabalho para os cegos, como pelas próprias pessoas cegas? Cutsforth e Chevigny mostram até que ponto as associações para cegos, direta ou indiretamente fazem uso destes conceitos. Eles apontam para o número de associações que incluem nos seus nomes as palavras "luz" ou "luz solar", ou qualquer outro derivado; e empregam nos seus anúncios termos ou expressões similares; dão às suas publicações nomes que têm referência à mesma idéia; sugerem, nos seus avisos ou em contado com a média do público, uma ou outra expressão do mesmo pensamento, e direta ou indiretamente fazem ou dizem coisas que propagam a noção da cegueira como a de um "mundo escuro", de temores e desespero.

Pessoalmente eu me recordo e me penitencio, pois logo que comecei a trabalhar com pessoas cegas prontifiquei-me em difundir essas idéias com toda minha boa vontade, até que outras pessoas me mostraram a falsidade delas. Neste campo, a idéia ainda prevalece, fortemente. Há pouco tempo, dois graves fatos se deram, quando de uma campanha para angariar fundos: um deles partiu de uma importante associação particular para cegos e a outra de uma não menos importante organização também de pessoas cegas. O primeiro prêmio consistia de um "livro colorido", supostamente pertencente a uma criança cega; a capa do livro apresentava-se ricamente coberta de cores e desenhos apropriados para crianças. No momento em que o ganhador abrisse, encontraria uma página completamente negra, mostrando assim como seria esse livro para uma criança cega. O segundo prêmio, semelhante ao já descrito, apresentando também uma página negra que seria o mundo para o adulto cego. Ambos devem ter concorrido para o sucesso da campanha que angariava fundos, porém, nem todo o dinheiro obtido pagaria o mal que causaram aos cegos.

No entanto, esta divulgação do conceito da escuridão não é trabalho privativo de associações. Cutsforth e Chevigny, ambos cegos, apontam o grau de responsabilidade que cabe a indivíduos cegos que, com insistência, relacionam a cegueira com a escuridão. Notam particularmente os títulos dos livros escritos por cegos e que se referem à entrada ou permanência na "escuridão". E, todos aqueles que presenciaram indivíduos cegos (com percepção de luz ou não) falarem a um grupo de pessoas providas de visão, ouviram mais de uma vez como eles se referem à noção de que "vivem nas trevas". Não é, pois, de se admirar que a grande massa do público em geral continue a relacionar a cegueira com a escuridão, com as trevas e com todas as idéias tristes e sensações de mau cheiro que a "escuridão" tem para eles.

Já que não existe uma escuridão positiva, nem perda de luz no sentido comum da palavra, o que significa então esta "perda de segurança luminosa" a que nos referimos acima? Consideramos, anteriormente, algo muito parecido com isso, no que se referia à perda do campo visual, de luz e de mudanças. A perda da segurança luminosa, porém é distinta da anterior. Desde que é tão penosa para os cegos, ocorre a necessidade de um esclarecimento a fim de que seja devidamente entendida e cuidada.

Uma pequena porcentagem de pessoas cegas, como já foi dito, não percebe nenhuma luz; "falta de luz" descreve melhor suas condições do que "escuridão". Tais pessoas sofrem de duas maneiras a perda da "segurança luminosa".

Em primeiro lugar, muitos são afetados e prejudicados pelo conceito generalizado de que "vivem na escuridão". Caso você tenha sido muito lastimado por ter vivido nela durante bastante tempo, forçosamente você será compelido a acreditar nisso, a não ser que você reavalie a situação. Se por acaso você nasceu cego, não tem conhecimento de luz e escuridão, então, você precisa acreditar naqueles que dizem que você vive na escuridão. Acontece que tantas pessoas temeram tanto tempo durante a perda final da visão, em termos de escuridão, que quando chega a cegueira, elas jamais reavaliam a sua experiência de ver, se é que realmente se encontram na escuridão. O significado pleno do conceito, com todas as suas conotações obscuras, muitas vezes pode e chega a oprimi-los.

Em segundo lugar, mesmo para aquele grupo que rejeita o conceito do público, a falta de luz pode ter significados que perturbam em geral, tais significados são resultantes de associações pessoais que a "noite" e a "falta de luz" têm para o indivíduo. Talvez, freqüentemente, na sua infância, e de modo muito especial na sua primeira infância, o cair da noite se associava com a separação daqueles que amava. Portanto "luzes apagadas" significavam solidão, o ser colocado num quarto sozinho com sua própria insegurança, isto é, afastado da mãe e do pai e de todos que poderiam lhe prodigalizar um pouco de amor. O período de tempo sem luz era também sem amor. E o amor estava no andar de baixo junto com os adultos e ele era excluído e posto num quarto fechado, incapaz de senti-lo ou conhece-lo. Tais temores e sentimentos de insegurança podem ter sido reprimidos, com sucesso, através dos anos, mas o período de tempo sem luz pode ter significado, para ele, uma época em que ele se achava suscetível a acelerar as origens da ansiedade. Agora ele se encontra num período de constante falta de luz e caso esta tenha o significado de falta de amor, então, a natureza irreversível da cegueira permanente pode originar sentimentos de solidão particularmente fortes e os sentimentos parecem não ter fim. A insegurança que daí resulta é difícil de ser tratada. Novamente encontramos em uma das perdas que constituem a cegueira não somente o importante fator da realidade, como também abrange todos os significados e associações que contribuem para a própria perda.

Resumindo: embora a perda atual da luz não afete toda a pessoa que é cega, embora não deva ser considerada como o máximo da cegueira, embora, além disso, nunca deva ser tomada no mais amplo sentido textualmente emocional que o público em geral lhe atribui, contudo alguns perdem a luz e as conseqüências se fazem sentir na perda da segurança luminosa.


CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver com ela. São Paulo [s.n.] 1968, cap.2.

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