PERDAS NAS HABILIDADES BÁSICAS.
Por Thomas J. Carrol

1. Perda da mobilidade. A pessoa que subitamente é privada da visão (e considerando-se somente a perda repentina e total poderemos imaginar o que representa este golpe) fica imobilizada. Está fixada, enraizada, confinada ao lugar em que se encontra. Perdeu uma das principais características do seu desenvolvimento da primeira infância, a capacidade de andar, e permanece preso pelo pânico e medo – ansiando por brechas à sua volta e temendo protuberâncias. Sozinho, está sendo observado. Rodeado, está isolado, não tem segurança, não tem maturidade, não tem habilidade – é um ser terrivelmente dependente.

Isto é uma imagem exagerada, considerando-se o pior. Contudo, mesmo que a chegada da cegueira seja gradual, mesmo que seus resultados não sejam tão intensos ou tão aterradores, algo deste sentimento se apodera dos que perdem a visão, em alguns casos, estes temores adquiridos aparecem somente após as primeiras tentativas d locomoção; em outros, o pânico poderá ser insignificante. Mas, para todo adulto normalmente ativo que perde a visão, a perda da mobilidade é uma perda essencial. Porque mobilidade significa mais que andar. Significa ir de um lugar para outro, através de todos os meios que geralmente a criatura se utiliza, quer seja no pequeno espaço de uma sala ou de uma casa na qual trabalhamos ou vivemos, quer seja em áreas geográficas locais ou extensas. Significa ir-se a algum lugar pelo prazer de lá chegar, com propósito de afastarmo-nos de onde estamos, ou então simplesmente com a finalidade de "ir". Todos nós já presenciamos pessoas cegas movimentando-se de um lugar para outro, utilizando-se de vários métodos. Sabemos que a completa imobilidade do cego, como foi acima descrita, não é um fato contínuo. Efetivamente, espaços nem sempre se interrompem, como os obstáculos nem sempre bloqueiam o caminho. Na verdade, um cego andando dentro de sua casa, logo após a perda da visão, enfrenta a mesma situação que nós, quando, como freqüentemente acontece, andamos dentro de nossa própria casa depois de apagadas as luzes.

Contudo, há uma grande diferença. Para o que perdeu a visão existe a terrível imutabilidade da sua condição ou a repentina compreensão da possibilidade este terrível destino. Ou sabe que nunca mais verá, ou vive sob o temor de que este seja o veredictum do médico. Quem possui visão tem a certeza que mais cedo ou mais tarde a escuridão se dissipará e, portanto, são capazes de controlar os elementos neuróticos desse medo. Mesmo assim, quando estamos na escuridão, circunstâncias estranhas podem fazer vir à tona todas as espécies de pânico neurótico.

Quando ele imagina (ou sente) que o chão de sua própria sala de visita repentinamente mudou de forma, quando pensa que talvez haja uma falha - provavelmente o assoalho não esteja mais perfeito - quando receia que alguém tenha retirado o corrimão da escada - estas são reações neuróticas. Mas, ao contrário, quando acredita que talvez uma cadeira esteja em seu caminho e que poderá ferir suas canelas ou quebrar seus artelhos, quando sabe que poderá bater na ponta de uma mesa e perder o fôlego e, portanto sofrer danos físicos, quando se preocupa com a possibilidade de alguém ter deixado a porta parcialmente aberta com a aresta virada em sua direção e que possa colidir com ela e cortar o rosto e sangrar - estes são medos reais e muito normais em qualquer indivíduo.

Esta distinção é extremamente importante, alguns exemplos: uma multidão comprando numa loja, como regra não envolve nenhum perigo; a pessoa que, no meio dela, sente um medo injustificável está à beira de receios neuróticos. Ao passo que uma multidão descontrolada, prestes a transformar-se numa turba, representa uma ameaça real. A multidão que nos empurra inevitavelmente para os trilhos do metrô é ameaça real à nossa segurança e à nossa vida. Em tais circunstâncias o medo é real e normal. Além disso, a pessoa que teme as alturas, tem medo de sentar em balcões ou de subir a um segundo andar de um edifício, está possuída de receios neuróticos. Mas, o que se acha num lugar elevado, à beira de um precipício, por exemplo, - com perigo real de queda mortal, quer seja por pressão vinda de trás ou por insegurança, no andar - tem motivos reais para temer por sua vida.

Neste plano real - sem inclusão do neurótico - o cego tem muito a temer quando pretende caminhar ou viajar. A experiência e os erros ajudarão a diminuí-los. Mas haverá sempre mais perigos para o cego locomover-se do que para nós. Haverá sempre mobílias e pequenos obstáculos num lar. Haverá sempre escadas, carrinhos de bebês, animais, objetos sem valor, pequenos buracos. Beiras pontudas de sinais pendurados em baixa altura, e os imprevisíveis pedestres ao longo das calçadas. Haverá gelo e neve, óleo, escavações, e guaritas. E haverá os automóveis com motoristas obedecendo aos sinais e à velocidade legal e com motoristas desobedecendo a ambos. Motoristas com pára-brisas e motoristas com o sol nos olhos, motoristas surgindo de becos e cruzando esquinas. E com todos estes haverá o perigo – perigo real - de pequenos acidentes físicos, de acidentes graves, da própria morte ou simplesmente de embaraços.

Estas perspectivas obrigam a pessoa cega a necessitar de maior motivação para sair do que o restante da humanidade. Exercícios e prazeres são razões suficientes para muitas pessoas andarem, mas isto raramente sucede com a pessoa cega não treinada. A motivação não é suficientemente forte para superar as inconveniências; ela não alivia o forte empecilho das tensões e dos perigos de danos corporais. O aborrecimento do lugar em que estamos, a monotonia, o cansaço, o nervosismo, a necessidade de mudar de ambiente são motivações que nos levam a ir a algum lugar ou simplesmente andar de um lugar para o outro. Mas, a monotonia e a necessidade de mudar de lugar têm que ser mais preementes na pessoa cega para anular as dificuldades que envolvem seu ato de andar.

Os lugares que queremos visitar - nossos negócios, um clube, um cinema, uma festa, igreja, conferência, casa de um amigo são para nós razões que justificam por si só, passeios e andanças pela cidade. Em qualquer circunstância, para a pessoa cega, o grau de motivação deverá ser maior em proporção ao grau de dificuldade que lhe é causado pela locomoção.

E se, além de todas estas dificuldades reais surgirem os receios neuróticos anteriormente estudados, então somente motivações fortíssimas de caráter essencial levarão o cego a mobilizar-se. Nestas circunstâncias ele estará realmente imobilizado. Este tipo neurótico de imobilidade poderá ser negado pelo indivíduo atingido. Seu inconsciente poderá racionalizar seu medo fazendo-o acreditar que ele não está interessado em ir, que "aquelas coisas não tem mais importância" ou que ele é "perfeitamente feliz e contente" em sentar-se calma e relaxadamente ou ouvindo seu rádio. Mas as tensões interiores poderão estar causando conflitos terríveis e infelicidade.

Até o presente, apenas mencionamos os importantes fatores de embaraço causado pelo simples fato de ser diferente, pelos erros na presença de estranhos, pelo fato de ser observado enquanto vi de encontro a um poste, de ser lastimado e todas as terríveis deficiências da dependência. Mas, mesmo que nada disto ocorra, a perda da mobilidade é, obviamente, uma perda essencial - uma das mais reais que se seguem à perda da visão. É o fim da independência adulta - a volta à imobilidade ou à dependência do gatinhar da infância ou à entrada forçada na lenta e confusa dependência da velhice.

2. Perda das técnicas da vida diária.

Nada há de sutil sobre esta perda. É o resultado de centenas de repetidas frustrações na vida diária da pessoa que se tornou cega e que a relembram deste fato - e nunca a deixam esquecer de que é cega. As pequenas coisas - enlouquecedoras em suas inconveniências, embaraçosas, dolorosas - resultam na incapacidade e na dependência da cegueira.

"Ele é surpreendente. Ele riu destas coisas. Eu o vi, outro dia, realmente embaraçado com o erro que havia feito, mas ele fez piada disto". Ficamos a imaginar se as pessoas que fazem estas observações sobre a pessoa cega têm alguma compreensão da natureza humana. Terão alguma idéia de quão sem graça foi a situação para a pessoa que riu? Que o rir foi apenas uma maneira de enfrentar a situação?

Comendo e bebendo, cuidando das funções intestinais e renais, conservando-se limpo e arrumado, despindo-se à noite e vestindo-se pela manhã, mesmo nestas funções, mais simples, a pessoa que ficou cega sente-se tolhida. No seu processo de crescimento estas foram as primeiras lições. Estavam entre as ações primárias cuja realização bem sucedida lhe proporcionava elogios e demonstrações de afeição - "Ele está realmente se tornando um rapaz!". E, de repente, mesmo nestas coisas, ele está frustrado, está restrito. A tanto ele desceu. A tanto ele regrediu.

Catalogar todas as dificuldades incluídas nesta perda preencheria um livro, e, na verdade, muitos livros escritos por pessoas cegas relatam inúmeras anedotas sobre estas pequenas frustrações e humorísticamente contam como os indivíduos as enfrentaram.

Comer causa tantas dificuldades que alguns cegos desistem de faze-lo de uma maneira normal e voltam a mamadeira e colher. Tente você mesmo uma vez a técnica de jantar de olhos vendados. Não lhe esclarecerá sobre a cegueira em si, mas lhe dará idéia sobre uma das fases da cegueira. Sua mão vagueia à procura do primeiro prato à sua frente, procura-os às palpadelas, explora-o, tentando descobrir o que é, para você saber, então, como manejá-lo. Será uma taça de frutas, coquetel de camarão, suco de tomate num copo alto, ou num copo baixo, suco de tomate num copo enterrado em vasilha com gelo. Sopa gelada ou quente? O que? Você a mastiga, chupa ou bebe? Que talheres tomam parte nisto? Onde estão eles? Que copos estão perto quando começamos a explorar? Isto é apenas o primeiro passo. Mais adiante haverá as pequenas e tolas ciladas, talvez as minúsculas taças de molho ou os acompanhamentos que você deverá fisgar com o garfo e tentar comer. Cada nova etapa será um desconforto para você. Não mais escolher uma garfada disto e depois daquilo; você desce o garfo sempre se resignando a aceitar o que vier, desejando apenas que não volte vazio u com todo o alimento dependurado nele. Não se preocupará em passar manteiga no pão, porque se você for como a maioria das pessoas cegas, terá decidido, neste momento, que não vale o sacrifício, que você realmente não gostava de manteiga e que, além disso, engorda.

O adulto que perde a visão, certamente, não precisará de um curso de "higiene pessoal" no sentido comumente aceito da expressão. Mas se ele acrescenta à sua cegueira a mesma sensação de embaraço a respeito das funções intestinais e renais que a geração anterior nos legou e que foi fortificada pelo aparecimento dos banheiros americanos, se ele tem a mesma preocupação com germes e sujeiras, se a limpeza não for meramente um acessório, mas alguma coisa de essencial - então, especialmente num banheiro estranho, e mais particularmente em lavatório públicos, sua falta de visão causar-lhe-á distúrbios. Para o homem acrescenta-se a humilhação de ser compelido a agachar-se todas as vezes que necessita esvaziar sua bexiga. Tanto para o homem como para a mulher haverá geralmente – problemas na higiene pessoal. Não somente a limpeza, mas a ordem trivial traz problemas para o cego. Ocasiões de manchar as roupas, quer seja derramando, quer indo de encontro a algo sujo, aumentam consideravelmente, ao passo que a capacidade de notar manchas ou sujeira das roupas desapareceu. Roupas amassadas e geralmente com uma aparência relaxada podem ser resultado não só de um desinteresse neurótico, como pode acontecer também com os dotados de visão, mas da incapacidade de perceber o fato. Despir-se certamente não é das maiores dificuldades, é somente uma nova ocasião de lembrar ao homem a sua cegueira quando ele procura pendurar suas coisas de tal modo que na manhã seguinte poderá encontrá-las e reconhecê-las. Vestir-se já é um problema - escolher a gravata que combine com a camisa, o par de meias, e para as mulheres cegas naturalmente, haverá um grau maior de escolhas quanto à combinação de roupas e acessórios a serem usados diariamente ou em ocasiões especiais.

A escolha de novas roupas também está incluída nesta dificuldade. A capacidade de escolher as próprias roupas de acordo com o seu gosto particular é de muita importância para a maioria das pessoas. A mulher cega privada da oportunidade de sair e comprar um novo chapéu de acordo com seu gosto poderá ser vítima de forte frustração - conjuntamente, com a perda do efeito psicológico que um novo chapéu traz para muitas.

Considere os efeitos dos rituais de barbear-se ou maquiar-se. Mesmos que escolha um instrumento de barbear que não apresente perigo de cortar o rosto, você tem o problema de certificar-se se todos os lugares estão regularmente barbeados e a preocupação de manter a linha do cabelo igual. Escolher os potes de creme certos, o sabão e a ordem de aplicação dos mesmos são dificuldades que já se apresentam à mulher dotada de visão sem a complicação de não ser capaz de ver e diferenciar os mesmos. A maquiagem pode resultar numa feia mancha e o batom ficar feio como uma cicatriz, se você for incapaz de observar sua aplicação e seu resultado. E mesmo que se tenha certificado que o tubo que está segurando é de dentrifício e não de creme de barbear ou do novo shampoo, você agora enfrentará um problema de menor importância qual seja o de colocá-lo na escova e não em você ou no chão ou na pia.

Isto demonstra suficientemente porque a perda das técnicas diárias de vida comum é uma perda essencial, devido a multiplicação de centenas de pequenas inconveniências e aborrecimentos. Imagine-se tentando, sem o uso da vista, correr para casa, controlar suas contas, assinar cheques, contar o dinheiro em sua carteira, achar o telefone, discá-lo, localizar a chave que deixou cair no chão, achar o chapéu que pensou ter deixado na prateleira, conservar seu ambiente atraente, acender seu cigarro, esvaziar o cinzeiro, limpar os cantos, fazer compras para o lar ou necessidades próprias, comer num restaurante onde você tenha que servir-se, preparar um jantar, almoço ou seja o que for, escolher uma lata de comida numa dispensa de grande estoque, etc.

A perda de técnicas da vida diária obrigam a uma dependência e essa dependência e os embaraços que ela ocasiona, assim como a constante lembrança da cegueira em si, encerram uma grande dor. Com esta perda a pessoa que ficou cega morre para a auto-suficiência e responsabilidade adulta. CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver com ela. São Paulo [s.n.] 1968, cap.3.

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