PERDAS NA COMUNICAÇÃO
Por Thomas J. Carrol

1. Perda na facilidade de comunicação escrita.
   Esta perda - uma das mais amplamente conhecidas, conseqüentes da cegueira - abrange principalmente, como é natural, os símbolos da linguagem escrita e falada, mas inclui também os sinais, cartões, fotografias, etc; e portanto pode ser classificada como a perda da comunicação gráfica.

Se a perda da capacidade de ler se restringisse apenas à de ler livros, esta não seria uma perda tão extensa e não afetaria seriamente a grande maioria dos que ficam cegos, a porcentagem dos que passam considerável parte do tempo lendo é menor do que geralmente se pensa e portanto, a privação desta capacidade em particular, é importante para um número reduzido de pessoas.

Mas, isto não significa que não seja angustiosa para muitos.

Apesar de não nos considerarmos intelectuais, a leitura ocupa um importante lugar em nossas vidas. Quando a cegueira nos priva desse poder, a perda é pungente. Contudo, para quem não lê, esta incapacidade representa, apenas, uma frase sem sentido.

Mas, existem inúmeros leitores que nunca abrem as páginas de um livro. Entre estes, os que passam a maior parte do seu tempo livre lendo revistas. Qualquer que seja o valor da leitura, a perda da habilidade para ler é de grande importância para eles.

Existe ainda os leitores de jornais, publicações comerciais, revistas especializadas, boletins econômicos e trabalhistas, sendo tudo isto muito importante para a atividade normal do indivíduo. A perda da habilidade para ler este tipo específico de material pode ter influência direta na sua capacidade de ganhar a vida ou de manter sua posição dentro da profissão. Aqui, então, a perda será severa.

Muitos outros lêem apenas os jornais do dia. Entre estes estão os ávidos leitores, cujas manhãs estão estragadas sem o jornal matutino e os que não terminam o dia sem a última edição. Tire a capacidade de ler destes indivíduos e terá infligido a eles rude golpe.

O mesmo acontecerá, com qualquer que seja o tipo de leitura. Poderá ser um livro cômico ou de anedotas (e incidentalmente muitas pessoas cegas inteligentes perdem a paciência com adultos que têm tempo para ler a Pequena Órfã Annie, Dick Tracy e etc). Poderão ser anúncios, talvez, extrato de contas; ou a leitura do boletim meteorológico. Seja o que for, a perda será maior ou menor, dependendo do valor que lhe atribua a pessoa. Assistir televisão é outra forma de leitura gráfica, que deverá ser considerada, mas em conexão com as perdas de recreação. E naturalmente, existem as formas mais simples de leitura, como procurar o número de telefone numa lista.

Porém, a maior destas perdas da capacidade de ler é a que diz respeito à incapacidade para ler a própria correspondência e a correspondente perda para escrevê-la sem o auxílio de outrem. Esta perda é muito dolorosa porque envolve não só a independência mas, a reserva pessoal.

E temos aqui a grave perda da habilidade de assinar o próprio nome. É legalmente válido assinar um X mas, isto é um golpe definitivo no orgulho e amor-próprio.

E assim, a habilidade para preencher um cheque e em grau menos, garatujar a lista de compras, o número do telefone do namorado, a anotação pessoal de lembretes, notas sociais, mensagens num cartão de Natal.

Apenas os autores, editores, repórteres e outros em ocupações similares sentirão profundamente a perda na habilidade de trabalhos manuscritos. Mas, existem também os contadores, os desenhistas, os datilógrafos, os impressores, cuja atividade diária está ligada à comunicação escrita.

A perda total na facilidade desta comunicação é muito mais séria em nossos dias, do que no passado. Não somente a cultura é largamente difundida, mas, a inabilidade para ler e escrever é geralmente (embora falsamente) equacionada com a ignorância e insensatez.

O cego, incapaz de ler e escrever, torna-se num certo sentido "iletrado" (analfabeto).

Desta maneira, em mais uma esfera de atividade importante e normal, ele é não somente inábil, mas, colocado de lado, como os ignorantes e néscios.
   Visto que, ler e escrever são um dever em nosso país, e inclui todas as pessoas normais, acima de 7 ou 8 anos, a perda da comunicação escrita é mais grave do que parece à primeira vista.

Muitos progressos técnicos em nossos dias procuram amenizar esta perda (apesar do avanço da televisão parecer acentuá-la).

No entanto, esta perda persiste como uma das maiores limitações - o término da nossa habilidade para transmitir e receber comunicações através da palavra escrita.

2. Perda na facilidade da comunicação falada. Esta perda afeta não somente o próprio ato de ouvir e falar, mas também gestos, posturas, maneirismos, mímicas e expressões faciais - todos os elementos não falados na comunicação oral. No entanto, ao contrário da precedente, esta perda é raramente analisada e reconhecida.

A distinção fluente feita em geral é de que a surdez separa a vítima do mundo das pessoas, ao passo que a cegueira separa-a do mundo das coisas. Mas, a perda do desembaraço na comunicação falada é um aspecto da cegueira que (à parte da barreira psicológica que levanta) igualmente tende a separar o cego do mundo das pessoas.

Até mesmo no elemento vocal da fala a pessoa cega sofre uma deficiência. Todos nós - conscientemente ou não - somos, em um certo grau, leitores "labiais". Quando ouvimos, percebemos algumas palavras com nossos ouvidos; outras palavras nós "vemos" parcialmente. Se os lábios do orador estão escondidos, nós precisamos nos concentrar muito a fim de captar as palavras.

Mas as palavras são apenas um elemento do falar. A expressão facial que acompanha qualquer declaração é capaz de mudar todo o seu sentido. Um sorriso pode transformar um insulto grosseiro em cumprimento, um escárnio converte uma observação em exprobação. A pessoa que não pode ver as mudanças das expressões faciais pode perder completamente a intenção do interlocutor; e então, a comunicação comum, comunicação "vocal", a engana. Torna-se ineficiente. Os gestos que acompanham "lá" ou "assim grande", "deste tamanho" são freqüentemente usados diariamente na conversação comum.

A saliência do queixo com o qual o narrador acompanha sua descrição do indivíduo agressivo, não é parte essencial da estória, mas importante na conversação, e disto o cego é privado.

Também, importante é o encolher dos ombros, o arquear das sobrancelhas, o balançar da cabeça que são, por si só, palavras, frases e sentenças - e algumas vezes mais importantes que muitas palavras faladas.

A incerteza sobre a proveniência de uma voz sobre o lugar em que está aquele que fala, pode tornar difícil a identificação do orador, e conseqüentemente, impedir a conversação. Mais difícil ainda é a incerteza da direção para a qual a voz se dirige. "ele esta falando comigo?" é uma pergunta constante no pensamento do cego, porque não tem meios de saber se é a ele que se dirigem. Ou ainda, a conversação, especialmente entre amigos, é freqüentemente intercalada de silêncios. Mas, ao cego falta a capacidade de julgar o significado destes silêncios; não pode ver as disposições e expressões que os acompanham. Em lugar da calma e relaxante meditação que indica, o cego imagina nervosamente se esperam que diga algo. Ele embaraçou ou insultou alguém com o seu silêncio? E há sempre a possibilidade do silêncio indicar que os outros participantes da conversação tenham mansamente deixado a sala, sem nenhuma indicação, além da visual, da sua retirada.

Pior do que tudo é a terrível e imperdoável possibilidade de que haja outra conversação à sua volta, na qual ele não deve tomar parte - que por sinais e gestos, os que vêem estejam "conversando" sobre sua cegueira. Isto é raramente feito, a não ser por simpatia; feito, às vezes, mesmo por familiares e pior ainda, pelos que trabalham com as pessoas cegas. Qualquer que seja o motivo implica numa total falta de confiança na pessoa cega e desta, na sinceridade dos que as rodeiam.

A sua própria conversação sofre similar alteração, apesar de nada ter acontecido com sua voz. Muitos dos elementos acima referidos obviamente têm influência nisto. O cego nem sempre tem certeza de que a pessoa à qual se dirige está presente ou exatamente aonde ela está. A pessoa cega, por conseguinte, pode adquirir o que Cutsforth classifica como "voz radiofônica" a voz que em vez de se dirigir a uma pessoa em particular, procura (como a voz do locutor) encher a sala com o som a fim de alcançar a mesma, aonde ela estiver.

Um importante elemento na nossa conversação é a reação provocada pelo que estamos dizendo. Normalmente, nunca sabemos, ao iniciar um tópico, que palavras empregaremos e muito menos a ênfase vocal ou facial que poderemos usar. A conversação se desenvolve de acordo com as reações que percebemos. Se no é impossível vê-las nossa conversação sofre alterações.

Além disso, os gestos são partes da conversação (mesmo nas nações que acham que somente os estrangeiros gesticulam) e as pessoas cegas, mesmo os que ficaram cegos quando adultos, freqüentemente falham, não só na percepção dos movimentos naturais das mãos e do corpo que acompanham do falar comum, mas também no uso dos mesmos. Usá-los pode significar o embaraço de se chocar com uma mesa próxima ou uma lâmpada. Por isso o cego põe maior ênfase no aspecto verbal da fala do que no visual.

Por conseguinte, os gestos que as pessoas cegas fazem tendem a se tornar auto conscientes e isto, mais do que a falta de gestos interfere na comunicação falada.

Esta perda de gestos é algo em que a pessoa dotada de visão não repara especificamente. O que ela nota é a existência de alguma coisa intangivelmente "diferente" na maneira da pessoa cega falar. Afastar-se-á com a sensação de que "falta algo" inexplicável que dificultará a comunicação normal agravando assim esta perda.

A falta de expressão facial e a sua substituição pelo olhar vazio e riso fixo perturbam ainda mais a comunicação. Esta mudança resulta, em parte, da impossibilidade de ver as expressões faciais dos outros, causando uma falha na memória visual, quanto às nuances de expressão.

Parece que muito da nossa expressão facial é um reflexo daquelas dos que nos cercam e, portanto, não é de surpreender que faltando o "espelho" não haja imagem. Talvez, esta mudança seja devida, em parte, ao fato de que nossas expressões faciais variam de acordo com as reações dos outros ao que dizemos. Sendo o cego incapaz de perceber estas reações enquanto fala, ele poderá inconscientemente manter uma "expressão morta", até perceber se a tendência é para a aceitação ou rejeição.

Existem razões para se acreditar que esse sorriso fixo seja uma máscara, a "fisionomia de um jogador de poker" inconscientemente adotada para esconder os verdadeiros sentimentos. (quem já viu a mudança na expressão facial e na postura da pessoa cega, quando ela chega ao íntimo de algumas sensações, por exemplo, no curso de uma análise, deve dar crédito a esta possibilidade).

Uma espécie de máscara é sempre necessária para aquele tipo de pessoa cega que geralmente está ausente de uma conversação, sonhando com seus problemas íntimos.

Estas e outras expressões e hábitos classificados com "maneirismos" interferem nas relações sociais normais e causam uma verdadeira barreira à comunicação.

A incapacidade de focalizar a vista, ou, então a tendência do globo ocular em mover- se constantemente, realçando o brando dos olhos, causa em muita gente uma impressão desagradável.

Estas dificuldades podem aumentar para a pessoa cega que se dirige a uma audiência. Ela pode, por exemplo, virar-se um pouco, quando se dirige aos ouvintes, sem saber exatamente, onde se encontram e com isso partir o vínculo que os une, fazendo surgir um obstáculo intransponível à transmissão da sua mensagem.

Outro problema para o orador de plataforma é a dificuldade de falar enquanto lê as anotações. Relativamente, poucas pessoas cegas lêem tão fluentemente Braille que as permitam ler rápida e desembaraçadamente um discurso.

O problema foi resolvido em parte, por um orador cego canadense, num encontro internacional, em Paris; a esposa permaneceu fora do palco, lendo suas anotações datilografadas num microfone ligado por um fio, a um aparelho de escuta colocado em seu ouvido.

Mas, qualquer humor da assistência interfere na concentração do orador nas reações da mesma em relação a sua palestra. Portanto, a perda na facilidade de comunicação falada é uma das perdas da cegueira que se assemelha à da comunicação pessoal resultante da surdez. De fato, a pessoa cega falando é, em certo sentido, muda à sua própria voz, desde que seja surda à reação dos outros para com ela.

Mais sério ainda e sublinhando todos os outros problemas, é a perda irreparável na comunicação do "afeto", isto é, daquele algo, além das palavras usadas que une as pessoas e as almas.

Palavras são ouvidas e pronunciadas pelas pessoas cegas, mas freqüentemente a personalidade que lhes dá vida, a "materialização" das palavras perdeu-se.

Teremos, aqui, novamente, uma perda essencial dentro das múltiplas limitações da cegueira. É a morte adicional para o mundo no qual a pessoa que ficou cega vivia, é a perda fatal dos amigos e conhecidos.

3. Perda do progresso informativo. Vários nomes podem ser dados a esta perda - perda da percepção da cena social, perda na aquisição de informações, perda na habilidade de se manter atualizada ou perda do contato com o dia presente. É a perda do progresso quando as outras coisas se movem, é uma parada enquanto o mundo caminha, na verdade, é um retrocesso, pois coloca a pessoa cega em posição inferior à posição anterior.

Esta perda é o resultado do fato da pessoa que perdeu a vista, ser grandemente tolhida na obtenção do grau de informação exigida dela antes de perder a visão; na aquisição de conhecimentos gerais que a ajudavam a se manter num certo plano dentro do círculo de amigos, vizinhos, associados que formavam seu "ambiente intelectual".

O conteúdo desta perda varia de acordo com os indivíduos. Num grupo estará relacionado com os comentários rotineiros sobre a atitude social de um compositor recém descoberto ou sobre os maneirismos de um filósofo de salão. Em outro, poderá ser a biografia jornalística de um proeminente figura dos esportes ou o resultado de uma competição nacional. Profissionalmente, pode dizer respeito à novas descobertas sobre energia atômica, à posição das cotações da Bolsa, à pesquisa sobre algum vírus infiltrável, ou, refere-se à salários mais altos, e maior segurança através de uma nova associação, ou à vantagem de empregos, numa indústria recém construída.

A aquisição de informações pode estar relacionada com tais assuntos como história em quadrinhos, a atividade de artistas cinematográficos, a média de atuação dos jogadores de bola, os personagens de um assassinato em um caminhão, escândalos na vida pública e privada, o valor relativo de vários cosméticos, o traçado da última auto-estrada ou os novos carros.

Para cada grupo, o conteúdo é diferente. Mas, para o que ficou cego, os meios e oportunidades de progresso e de manter-se em dia com os acontecimentos, dentro de cada grupo, foram definitivamente cortados. Significa um retrocesso. É ficar parado, enquanto o mundo avança.

Aquele que ficou cego poderá obter novas informações, mas seu progresso visual está cerceado e como resultado, sua capacidade de informações é terrivelmente limitada. Porque o progresso aqui depende em grande parte de duas coisas - da leitura e da observação de pessoas e coisas. A espécie de leitura poderá ser qualquer uma das variedades analisadas no capítulo sobre comunicação escrita; em todo caso, é óbvio a dificuldade e até mesmo a impossibilidade de qualquer espécie de leitura. A observação das pessoas não é necessariamente "só" visual; entretanto, aqueles entre nós que cresceram dotados da visão compreendem a parte importante que o "ver" tem na nossa observação dos indivíduos. A ênfase visual é ainda mais pronunciada na observação das coisas. E com a perda da mobilidade, as chances de observar estão restritas a uma pequena área geográfica.

Aquele que perdeu a visão que ainda usa as roupas de antigamente, aquele que corta o cabelo à 1911, podem assim agir devido à falta de conhecimentos atuais, ou pela mesma razão a pessoa cega pode não estar a par, como toda vizinhança, da demolição da casa do quarteirão seguinte tão penetrante é a dificuldade do cego em observar pessoas e coisas comuns da vida diária.

Ela sofre também uma redução nas oportunidades de obter novas experiências e informações sobre acontecimentos programados ou prenunciados, tais como a escalação do próximo jogo, o anúncio de uma conferência, o peso dos lutadores de boxe no jogo do dia, o programa de um concerto ou ópera, o chamado para o teste de incursão aérea, ou a eminência de uma tempestade. A falta dessas informações pode causar a pessoa cega prejuízos em várias áreas de sua vida.

Mas, a dificuldade para obter informações atuais afeta mais diretamente a sua posição perante sua própria mente e no círculo de amigos e conhecidos. O que acontecerá a sua posição dentro da sociedade quando ele tem (ou sente que tem) cada vez menos para dar? As informações são o estofo, do qual o conhecimento é formado e geralmente confunde-se a falta deste com a falta de inteligência. Os amigos começam, logo, a pensar que a falta de atualização nos conhecimentos por parte daquele que perdeu a visão é fruto da estupidez. E não estará longe o dia em que ele próprio se considerará um ignorante.

É fácil observar os efeitos na pessoa que se tornou cega, quando ela começa a perceber o que resulta deste "morrer para o mundo em que vive". Ela pode render-se e viver no passado; tornar-se um "técnico" em algum assunto e dominá-lo todas as vezes que alguém o ouça; tomar a palavra e falar sobre coisas, das quais nada sabe; parar completamente o seu desenvolvimento intelectual, fechar sua mente a todas as opiniões novas e apegar-se somente às coisas que já conhecia - a não ser que, algo seja feito para restaurar esta perda, nesta área vital de manter-se em dia com o mundo em desenvolvimento.


CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver com ela. São Paulo [s.n.] 1968, cap.4.

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