PERDAS RELACIONADAS À OCUPAÇÃO E À SITUAÇÃO FINANCEIRA
Por Thomas J. Carrol


1. Perda da recreação Recreação é arejamento, reanimação, dádiva de uma vida nova, especialmente, após trabalho estafante ou ansiedade. De uma forma ou de outra, é importante para todos e em especial para aqueles sob séria tensão. Todavia, no decorrer de uma cegueira recente, com todas as tensões e pressões que acarreta, a pessoa cega também perde a recreação. Sob qualquer aspecto, trata-se de uma perda grave.

A recreação varia muito, de acordo com as necessidades de cada indivíduo - temperamento, hábitos - que seria impossível catalogar todas as suas formas. Entretanto, já ajudaria bastante se nos ocupássemos das mais comuns, dentro de nossa cultura, a fim de termos a noção de quantos são os seriamente prejudicados com a perda da visão.

A recreação, para a maioria das pessoas é intelectual ou física, ou mesmo, uma combinação de ambas. Para alguns, a leitura recreativa vem em primeiro lugar. Há também os que gostam de trocar idéias com outros, a respeito do que leram. Já outros preferem o cinema, teatro, jogar cartas, ou mesmo, encontram estímulo no jogo de damas ou de xadrez. Muitos se divertem dentro do ilimitado campo da conversação e contato com pessoas. A recreação pode também consistir em assistir televisão, ou praticar um ou outro tipo de esporte, comer fora, novas amizades, ter prazer em dirigir um carro, cavalgar, os "hobbies" - colecionar selos ou coisas inúteis. A oficina de trabalho no fundo do porão, a tela do pintor amador.

Há, outrossim, a recreação que exige um esforço físico maior: o "constitucional"; as longas caminhadas através das florestas, o jogo de bola, o boxe, tênis, as partidas de golfe, caçar, pescar, velejar, praticar equitação e toda aquela série de atividades que fazem com que o indivíduo se sinta como "novo". De repente, a cegueira interrompe tudo; tira todo o prazer, colocando um ponto final em tudo isto.

Geralmente, se pensa na música como uma forma de recreação universal para a pessoa cega. Contudo, o músico-cego-pianista, trompetista, aquele que se dedica aos instrumentos de corda - encontra agora seu prazer bastante diminuído, ou mesmo acabado, se ele até então dependia, em parte, ou totalmente de música impressa. É certo que o indivíduo que encontrava prazer em apenas ouvir música, pode continuar sua recreação da mesma maneira que antes. Porém, se para tanto ele necessitava sair de casa, para se dirigir a locais, onde agora não pode ir, ou se fica pouco à vontade, então, isto também irá prejudicá-lo.

Sejam quais forem os tipos de recreação, formais ou informais, que tenham ocupado uma parte importante na sua vida, ou somente nos fins-de-semana, ou nas férias anuais, sua perda pode acarretar uma completa confusão dentro dos moldes do seu padrão de vida, incluindo o campo emocional e seu bem-estar físico.

Se a participação de um determinado esporte é importante para um homem da sua idade, então, sua própria presença ali, cego, incapaz de participar, pode acarretar-lhe sentimentos de frustração, até mesmo, despertar sentimentos de suspeitos em relação à sua masculinidade. É lhe negado até mesmo aquilo que é tão importante para o que tomam parte em competições de esportes e que lhes é devido - a recompensa dos aplausos por algo bem executado.

A recreação pode ter tido diferentes significados para o cego - uma fuga das vicissitudes e labutas da vida e agora, com toda a certeza, as vicissitudes se não a fadiga da vida aumentaram tremendamente e não há escapatória. Poderia ter sido seu único meio de afastar sentimentos (quem sabe, de hostilidade e agressão) e agora, nada resta a fazer em relação a estes sentimentos, exceto mantê-los dentro de si mesmo.

Poderia ter sido seu único meio de proteção contra divagações, sonhos e fantasias eróticas e, agora, esta proteção desapareceu. Poderia ter sido sua única oportunidade, para competições de igual para igual, a fim de se sentir autêntico, completo e adequado - e agora quando ele mais necessita de tais coisas, elas desaparecem.

A perda da recreação é uma perda grave, uma "morte", na qual não há oportunidade para "arejamento", para uma "vida nova".

2. Perda da carreira, do objetivo vocacional, da oportunidade de emprego. Todos aqueles que perdem a visão não devem achar que necessariamente sua carreira está terminada. Mais ou menos 50% deles conta com mais de sessenta e cinco anos de idade, no momento em que ficaram cegos e sua carreira ou já está no fim, ou já estão de tal forma estabelecidos que podem continuar. Alguns dos que ficam cegos mais cedo, ou em pleno apogeu da sua carreira, estão aptos, devido à natureza de suas ocupações, a voltar para a mesma, com pequena ou nenhuma interrupção da carreira, por exemplo, os advogados, juízes, funcionários executivos, etc. Contudo, a perda da carreira, de um objetivo vocacional, de uma oportunidade de emprego é uma perda importante para a maioria das pessoas e assume aspectos graves para outras. Em nossos dias, reconhece-se, pelo menos um pouco, tal fato, embora a questão de emprego seja muitas vezes confundida com a questão do salário e segurança pecuniária, ou com a noção de "trabalho ativo".

Perder o emprego e, muito especialmente, aquele emprego onde se deu o melhor de si mesmo, ou do qual a carreira parece depender, pode se tornar uma verdadeira tragédia em si mesmo sem cegueira.

Os jornais publicam notícias de pessoas que pularam de uma ponte ou de uma janela, atestando, muitas vezes, que a perda de um emprego, o fracasso de um negócio, ou da carreira profissional respondiam pela tragédia. Certamente, a perda de um emprego, o insucesso de uma carreira, o bloqueio de um objetivo vocacional podem constituir um golpe muito sério, sendo que a natureza e gravidade dos mesmos dependem do significado da carreira ou da finalidade da mesma para o indivíduo.

Acima e além dos proveitos financeiros de um emprego, acima e além da necessidade de se manter ocupado, a carreira, a própria vocação e as oportunidades de um emprego, possuem profundo significado e se revestem de grande importância (1). Estão ligadas à dignidade do indivíduo, à dignidade do emprego, ou posição envolvida, à dignidade do trabalho em si, às necessidades sociais, à necessidade externa e interna de fazer aquilo que é esperado ou exigido de nós, de acordo com nossa idade, habilidade, instrução e ambiente.

O mais importante para nós, aqui, é que o impacto desta perda no indivíduo varia de acordo com todos esses fatores. Porém, para cada pessoa que normalmente deveria trabalhar, a perda de uma oportunidade de emprego, de um objetivo vocacional, o término total de uma carreira, é em si mesmo uma grave perda e deveria ser reconhecida como tal. Aqui, trata-se de "morte" do que é útil, de uma vida de produção e de merecimentos.

3. Perda da segurança financeira. Embora a perda de um emprego e a perda da segurança financeira não sejam necessariamente a mesma coisa, para o indivíduo médio, a perda do emprego significa a perda de seus rendimentos e bem poucos possuem economias para fazer face às necessidades e obrigações financeiras (2).

Além disso, ao lado da perda dos rendimentos, a cegueira pode através da perda do emprego, causar dificuldades financeiras, com o aumento das despesas. Este aumento pode ser considerado de suas maneiras: despesas com a doença e despesas decorrentes da própria cegueira.

As despesas da cegueira são óbvias: o preço dos hospitais, remédios, cirurgia, enfermagem. Mesmo depois de um veredicto final, de cegueira incurável, tais despesas continuam além do tempo previsto. Os boatos de um médico, em algum lugar, que já curou "justamente o seu tipo de cegueira". Segue-se a tão almejada viagem (às vezes, bem distante) em busca da cura. A volta cheia de desespero. Ou quem sabe, a estória de um novo tratamento - semanas e meses de despesas e novo fracasso. Tais coisas não acontecem com todas as pessoas cegas, mas ocorrem com bastante freqüência.
   As despesas decorrentes da cegueira provêm da perda da mobilidade, da comunicação escrita e de técnicas da vida diária. O indivíduo, cuja mobilidade foi interrompida, ou perdida rapidamente, se vê envolvido em novas despesas, quando há necessidade de se locomover de um lugar para outro. Antes andava, agora acha que precisa tomar condução. Antes, podia tomar um bonde, ônibus ou metrô, agora acha que há necessidade de um táxi. Onde, outrora, podia ir só, agora julga necessária a presença de um guia (e então, surge o ordenado do guia ou sua manutenção; as despesas "voam").

A perda da comunicação escrita acarreta a possibilidade de pagar um leitor - novas despesas.
   O mesmo acontece com as técnicas da vida diária: a pessoa cega precisa comprar serviços. Ela "compra a visão" e quanto maior a compra, mais pesados serão os gastos. O indivíduo habituado a fazer as refeições em restaurantes onde cada um se serve, é agora obrigado a procurar restaurantes caros onde será servido (pagando para isso). O comprador que procurava suas pechinchas e fazia suas compras em lojas, servindo-se sozinho, agora encomenda-as pelo telefone, recebe-as em casa, pagando por isso. As contas do tintureiro subiram, pois, a pessoa cega, inadvertidamente, mancha mais suas roupas, pelo menos precisa mandar lavá-las com mais freqüência, a fim de se assegurar de que estão limpas. O indivíduo que morava sozinho, agora precisa de uma governanta. O serviço de mensageiro tornando-se uma imposição, quando outrora pareceria um luxo.

Caso a pessoa cega tenha meios e se existe oportunidade para tanto, ela pode pagar pela sua visão, a fim de compensar as perdas. Ser-lhe-á possível, por exemplo, tentar recuperar seu emprego ou cargo, contratando alguém e pagando pela visão do "chauffeur", do observador, do ledor ou da secretária que necessita. Naturalmente, nestes casos a despesa será enorme.

Em verdade, há as pessoas, cujas despesas diminuíram com a cegueira. Trata-se dos não remunerados cuja cegueira transformou-os em "sentados". Nunca saem de casa, não necessitam de muitas roupas novas, cessaram de se interessar por coisas que representam gastos. No momento em que a reabilitação os alcança, tirando-os de suas cadeiras, suas despesas atingirão o limite "normal" - indo até mesmo além; tomarão condução para sair, começarão a se interessar em fazer algo e assim, inevitavelmente, começarão a comprar e a gastar.

Sejam estas despesas grandes ou pequenas, muitas delas decorrem da cegueira. Juntando-as aos gastos da moléstia, as despesas aumentam, enquanto que os rendimentos diminuem ou cessam por completo. Assim, pois, para muitas pessoas, esta perda de segurança financeira implica numa morte da liberdade.


CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver com ela. São Paulo [s.n.] 1968, cap.6.

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