PERDAS QUE IMPLICAM NA PERSONALIDADE COMO UM TODO
Por Thomas J. Carrol


1. Perda da independência pessoal.
   Poucas situações reais podem acarretar golpe tão duro à independência pessoal como a cegueira. Para o público em geral, o "cego desamparado" é o símbolo da extrema dependência. Todas as perdas estudadas até agora envolvem a perda da independência - até mesmo da integridade física - porque uma das primeiras sensações que produzem é a da dependência, e o fato em si mesmo de ser "diferente", no sentido já descrito torna a dependência mais difícil de ser aceita.

Mas os indivíduos reagem diferentemente a esta dependência forçada. Se pretendermos ajudar aos que perderam a visão em todas as suas necessidades, precisamos compreender que desde a nossa infância dependente, através da crescente independência da juventude e vida adulta até novamente à dependência da velhice, duas forças estão em choque: o desejo de independência com sua liberdade e o de dependência com conseqüente proteção.

Raramente estamos cônscios da grande influência dessas duas tendências divergentes sobre nossas vidas, mas o fato delas existirem resulta em certos paradoxos reais e inesperados. Falando de um modo geral, as pessoas que são classificadas como "muito independentes" são criaturas dependentes - e quanto maiores os sintomas daquilo que parece ser independência, maior a dependência oculta nelas. Ao contrário, todos que possuem a independência verdadeira, íntima, não tem dificuldade de, em certas ocasiões - doenças e calamidade imprevistas, que todos enfrentam - se mostrarem dependentes.

Quando ouvimos o comentário "ele é muito independente, não aceita ajuda", possivelmente descobriremos que "ele" é essencialmente uma criatura dependente - tão amargamente ansiosa para se livrar desta dependência, que se torna incapaz de aceitar ajuda. Qualquer auxílio aumentará esta sensação de dependente - e isto ele não tolerará. Vemos isto em pessoas que pretendem dominar os outros, procurando deste modo impedir que a própria dependência surja à tona.

Constatamos a mesma atitude nos que se rebelam contra as autoridades, contra os costumes, protocolos, moral, inibições e tabus.

Quando um motivo ponderável permite a uma pessoa justificar esta dependência ela se "extravasa". Se estiver doente, pode ser dependente - aberta, infantil e completamente dependente. Se estiver realmente doente agirá assim e encontrará prazer nesta atitude. Ninguém poderá criticá-lo. Naturalmente ele é dependente, mas está seguro que o é somente em virtude da gravidade de sua doença.

Nestes seres excessivamente dependentes surge, geralmente, no plano do subconsciente, uma forte amargura. Esta é dirigida não só contra si mesmo ou contra circunstâncias, mas, freqüentemente, contra a pessoa ou as pessoas das quais depende. E, muitas vezes, curiosamente, mascara-se com a aparência de lealdade ou amor.

Mas, o grau de verdadeira maturidade e independência mede-se pela capacidade de aceitarmos a dependência quando a isto somos forçados. A pessoa que alcançou maturidade e independência reais aceita as situações de dependência que aparecem em toda a vida. Ela pode lutar contra regras, costumes e proibições, mas o fará com bases razoáveis. Poderá concordar com as autoridades ou discordar delas, mas sua discordância não será aquela de uma criança rebelde, tentando provar que não é criança. Poderá caminhar só ou aceitar o auxílio de amigos e em nenhum caso isto a perturbará. Não sente a necessidade de forçar outros a dependerem dela, porque não precisa provar a si mesma nada de especial.

Entretanto, as pessoas não estão divididas em dois grupos - as dependentes e as independentes. Existem áreas de dependência emocional. Isto significa que não podemos depender de certas pessoas, pois delas poderão surgir todas as sensações de dependência contra as quais lutamos; na sua presença, nossa excessiva dependência torna-se patente. Algumas vezes aparece na forma de um apoio e em outras como uma raivosa independência. Algumas coisas e algumas situações causam a mesma reação. Mas, a extensão da nossa verdadeira independência é que determina o grau de pressão adicional que podemos suportar no campo de uma dependência forçada.

Desta maneira, as pessoas que antes de se tornarem cegas eram capazes de aceitar o grau normal de dependência própria de viver, são agora testadas de modo especial.

A dependência realmente oprime e embaraça. Disto as pessoas não fogem. Para aquelas que possuem uma noção íntima muito forte de dependência, existem somente duas possibilidades: ou entregar-se completa e totalmente a ela ou lutar amargamente para escapar. Isto vem expresso em duas atitudes extremas (ou verbalizações): "cegueira é uma deficiência insuperável e desesperadora" ou " a cegueira não passa de uma inconveniência secundária".

A reação normal de uma pessoa emocionalmente madura, em contraste, é baseada no reconhecimento da dependência imposta a ela, num enorme desejo de que assim não fosse na habilidade de aceitá-la quando necessário não inteiramente maduros emocionalmente e as reações da maioria das pessoas cegas também variam. Estas possíveis reações às forçadas dependências da cegueira explicarão as diferentes respostas: guia ou não, bengala ou não, cão ou não, Braille ou não, ledor ou não, trabalho ou não, reabilitação ou não.

A dependência que ela acarreta é suficientemente nociva. Mas, quando aquele que perdeu a visão compreende sua dependência e descobre em si sentimentos de amargura para com aqueles dos quais depende, pode encobrir esta sensação tornando-se mais dependente do que realmente é.

Ou, então, não a pessoa cega por si mesma, mas os que a rodeiam, aqueles aos quais está ligada por laços de afeição, podem inconscientemente aumentar sua dependência. Podem apreciar esta nova posição estabelecida entre eles. Sem perceber, a esposa pode sentir prazer em ter o marido, repentinamente, dependendo dela. Uma criança pode comprazer-se em ter um dos progenitores dependendo dela. Vizinhos e amigos podem achar que ter uma pessoa cega dependendo deles traz uma nova e agradável sensação de poder e assim inconscientemente procuram conservar esta situação.

A terrível perda da independência pessoal, é, portanto, uma das mais expressivas entre as múltiplas limitações vinculadas à cegueira - desde que a morte da vida independente significa o fim da vida adulta.

2. Perda da adequação social. A perda que vamos analisar agora é um dos golpes mais graves que pode atingir a maioria das pessoas (com poucas, mas distintas exceções): a perda da aceitação pessoal, da dignidade humana, quase da individualidade e personalidade. E, entretanto, esta perda, como a próxima a ser analisada, é supérflua. É imposta as pessoas cegas, não pela cegueira, mas por pessoas supostamente bondosas e simpáticas que a cercam.

Nós os que enxergamos, adicionamos a estas perdas múltiplas limitações da cegueira porque a tememos; tememos tudo que é relacionado com a cegueira - toda a escuridão, o mal, a ignorância e mistério envolvidos em sombras e melancolia.

Tememos todos os efeitos da cegueira: da perda de contato com a realidade, de sermos afastados das pessoas, do desemprego, da insegurança financeira, da privação do nosso modo normal de adaptação à vida. Tememos a nós mesmos e às nossas fraquezas. Receamos a imobilidade e a dependência. Sobretudo, nos atemoriza a mutilação e o desconhecido. E odiamos ter de enfrentar e admitir nossos temores. Em conseqüência, nós (a grande maioria dos que vêem) não consideramos nossa atitude para com a cegueira e não a enfrentamos racionalmente. Muitos se aproximam da cegueira e das pessoas cegas com a razão tão influenciada por conflitos emocionais que é quase impossível que ela funcione.

O medo traz a repulsa - e isto não gostamos de admitir. Enquanto admitimos repulsa para com a deficiência - nada há de errado nisto - entretanto achamos que a mesma repulsa a respeito de uma pessoa que possua a deficiência é muito errada, assim como qualquer intenção de afastá-la da nossa presença ou do nosso pensamento. Se existe em nós algum desses sentimentos, então, devemos impedi-lo de vir à luz. Em lugar disso, nós os encobrimos nos "apiedando" do indivíduo defeituoso - separando-o assim da nossa intimidade e ao mesmo tempo aliviando nossa consciência. Nossos sentimentos poderão ser ainda mais abrandados se dermos a ele algo - dinheiro talvez, ou insistindo para que a organização que mantemos o auxilie. Podemos ir mais além, prestando-lhe algum serviço - mas, novamente, motivados pela piedade. E esta "piedade" está enraizada no nosso medo e temor.

Possivelmente, as emoções provocadas pela cegueira estejam acima das nossas forças. Então, nós nos compadecemos do cego de longe. Estremecemos de emoção e admiramos as pessoas que trabalham com "eles". Ou, ao contrário, nos associamos intimamente à pessoa cega e passamos a "possuí-la". Forçamo-la a uma certa dependência e depois nos irritamos com uma suposta ingratidão se elas procuram exercer a própria vontade.

E, quer seja de perto ou de longe, fazermos a elas o mesmo que a todos os grupos minoritários - as segregamos da sociedade. Esta é a fonte de todas as falsas generalizações, cada uma sendo uma caricatura: o mendigo cego, o músico cego, o cego que sorri mas no íntimo odeia a sociedade, o cego feliz ("é admirável como são felizes!").

Esta é a razão pela qual as pessoas atribuem aos cegos virtudes extraordinárias ou poderes sobrenaturais - ("Eles são todos ótimos"), ou ("Não se pode esperar que tome sozinho esta decisão, você compreende"), ou ("como ele poderá ter certeza que é sua esposa?"). Em muitas ocasiões pessoas normalmente inteligentes confundem surdez com cegueira, dizendo, por exemplo: "se você lida com cegos, deve conhecer a linguagem dos sinais" ou dirigem-se a pessoa cega através de uma terceira pessoa (pergunte a ela se quer açúcar"), ou conversam em voz alta para terem certeza de serem ouvidos.

Nem os dotados de visão que trabalham com as pessoas cegas estão livres destes erros. Comumente não pensam, como faz o público, que a pessoa cega seja uma criatura amarga e ingrata. Mas, poderão considerá-la "dócil e gentil". Estes são os dotados de visão que se arvoram em "donos" dos cegos - os trabalhadores de associações que discutem e fazem relatórios sobre os "nossos cegos", o que fazem, e como pensam. "Nossos cegos são iguais aos demais sempre digo, mas, aqui entre nós, você não os acha diferentes?".

É neste contexto social que emerge o que recentemente perdeu a visão; dele ela traz todas as atitudes e sentimentos de compaixão pré-adquiridos. Agora, cego, é dentro desta sociedade que ele se move. E, como se os outros problemas da cegueira não fossem suficientes, ele percebe que já não é aceito por si mesmo.
   Na comunidade em geral ele está marcado como pessoa cega. Os que nunca se aperceberam dela e não pensavam nela em termos de adjetivo especial, têm agora uma nova concepção a seu respeito; ela é o advogado cego, o alfaiate cego, e a ênfase está na sua cegueira. Possivelmente um estranho pode se dirigir a ele, na rua, para perguntar se cursou o "Oshkosh College" - "Sentei-me ao lado de um cego durante todo o curso de Oshkosh e pensei que fosse você. Era um ótimo sujeito". Talvez tivesse sido um ótimo sujeito, mas, aparentemente, a única nota importante nele era sua cegueira. O nosso cego compreende que está assinalado. Está colocado numa categoria na qual se espera que ele se enquadre.

Seus amigos permanecem leais: "afinal, não nos afastamos de um amigo porque tornou-se cego". Mas logo ele percebe que alguma coisa está forçada. Eles vêm e são gentis; mas quando vão comentam entre si: "Pobre José! Está certamente aceitando de modo admirável. Não obstante, é penoso vê-lo daquele jeito. Apesar dele estar confiante". E José, geralmente, compreende que não é mais José, mas "José, o cego".

Aos poucos ele perdeu seu lugar na sociedade (entretanto, é possível que tenha assumido um novo lugar e goste do papel de "José otimista - o pobre cego"). No círculo mais amplo da comunidade ou num mais restrito dos seus amigos e vizinhos, ele perdeu seu lugar original - o qual, pela sua própria personalidade, caráter, hábitos e realizações, seu próprio ser tinha conquistado. Ele perdeu sua adequação social. Se encontra estranho, move-se num novo círculo, não como homem, mas como um cego que deve seguir seu caminho.

Mais grave ainda, ele perdeu sua posição dentro do próprio círculo familiar. Não é mais o sustentáculo, agora é um indivíduo inferiorizado.

Os pensamentos e sentimentos da sociedade penetram no lar. E aqui, ou a piedade não sobreviverá ou o lar será destruído. O cego é dependente - e nestas condições ele se considera uma carga (e os que assim pensam e se apressam em encobrir e enterrar de um modo ou de outro este sentimento). Freqüentemente, a sua dependência é aumentada porque outras pessoas dentro da sua própria casa, inconscientemente, apreciam a sensação de poder e superioridade que resulta desta situação. Cada vez mais as decisões familiares são entregues a outros, e mais e mais ele se torna dependente no seu círculo familiar. E a sua revolta contra isto baseia-se no novo caráter que lhe é dado pela cegueira ("Pobre coitado, tenho a impressão que todos os cegos são assim").

Nós que enxergamos, tememos a cegueira, e nos podemos enfrentar as emoções e sentimentos que ela faz nascer em nós de uma maneira tal que nos permita dar à pessoa cega seu lugar "pessoal" entre nós. Isto é, não podemos até que estejamos dispostos a enfrentar-nos e aos nossos sentimentos, e tratar a pessoa cega como uma criatura normal, de acordo com seu valor individual e sua integridade humana. Esta perda é uma faca de dois gumes. Não é só a atitude do público em geral, mas a atitude do próprio homem que ficou cego que importa. Se ele sentir que não se "adaptou" após a cegueira, se ele guardou ressentimentos e concentra-se em sua dor, há razões suficientes para não conseguir sua adequação social. Se no íntimo ele não estiver apto e pronto a assumir sua posição anterior, para viver no seu "status-quo", então ele, com todas estas atitudes, aumentará a dificuldade e a importância desta perda. Qualquer que seja a causa, a perda da adequação social, a perda da aceitação pelos amigos e parentes, a perda da individualidade provará ser uma das mais severas, provavelmente a mais severa entre as múltiplas deficiências.

Porque o homem é um ser social e isto é a morte para a sociedade.

3. Perda da obscuridade. A perda anterior era, num certo sentido, aquela da capacidade de ser "importante", de manter-se dentro do próprio padrão que ocupava previamente na comunidade.

A que vamos analisar agora é a da perda da habilidade de ser "pequeno", de perder-se na multidão, de ser obscuro, anônimo, de ser simplesmente mais um homem na rua. É, essencialmente, a perda da capacidade de ajustar-se entre os companheiros sem ser apontado como estranhamente diferente.

A pessoa que ficou cega perdeu sua reserva, seu retraimento; torna-se uma figura pública. "Cego bate na mulher", "Cego gradua-se", transforma-se em manchete, ao passo que o fato de um homem normal fazer o mesmo, dificilmente o colocaria na coluna policial ou sócial. A psicologia social está nos mostrando os problemas resultantes do fazer parte de um "fora do grupo" e principalmente o de ser marcado com o sinal de "fora do grupo". Esta é exatamente a posição à qual a pessoa cega fica forçada. Ela está sujeita à fulgurante luz sob a qual devem viver as personalidades públicas, mas, ao contrário destas, ela não a procurou. Ela foi forçada a aceitá-la como conseqüência de sua cegueira. Não só está vivendo numa vitrine (como um vidro que permite ser visto, mas que ela não pode ver), mas espera-se dela um grau de conformação que não exigimos das pessoas comuns. Algumas deficiências não marcam tão evidentemente os que a possuem, por exemplo: um surdo ou alguém com problemas cardíacos passam desapercebidos numa multidão. Outras deficiências, como defeito físico pronunciado, marcam suas vitimas de tal maneira que elas são notadas ao se locomoverem. O mesmo é válido na cegueira e para muitos isto se constitui no maior problema da cegueira.

Com este estigma surgem todas as questões de como melhor disfarçá-la - tentar "passar". Esta é uma das razões que leva muitas pessoas cegas a nunca usarem óculos escuros, bengala, ou cão-guia. E algumas vezes a pessoa que cai nos mais grosseiros maneirismos e nos sinais óbvios da cegueira, tais como arrastar os pés, insegurança e as que passam pelas experiências mais embaraçosas são aquelas que não conseguem usar bengala ou cães porque temem a idéia de qualquer insígnia que os marcará como pertencentes a um "grupo de fora".

Estas pressões externas e internas podem refletir-se no íntimo da pessoa cega e levá-la a uma situação de segregação, onde ela, por algum tempo ao menos, faz parte de um grupo. Pode tornar-se tão preemente que ela deseja afastar-se das ruas, das multidões, para algum lugar onde por alguns momentos, as atenções não se focalizem nela. E noite após noite ela se lembrará e sentirá saudades dos dias em que tinha liberdade social, quando podia misturar-se com seus companheiros.

Esta perda da obscuridade, na qual está entrelaçada a perda da individualidade, constitui um trauma grave e contínuo para o indivíduo que perdeu a visão. Um trauma no qual sua "reserva" morre.

4. A perda da auto-estima. A perda da auto-estima compreende duas fases distintas - perda da auto-estima objetiva e perda da auto-estima subjetiva (auto-imagem).

O ideal seria que estas duas estimas coincidissem numa auto-avaliação que levaria em consideração todas as nossas habilidades naturais dadas por Deus, nosso presente grau de desenvolvimento, nosso potencial para contribuições futuras e aceitação na sociedade. Tal auto-estima não seria nem autodepreciativa, nem auto-elogiável - seria de completa auto-análise. Mas, poucos entre nós são suficientemente honestos consigo mesmo para evitar uma superavaliação ou uma depreciação. Poucos têm a devida humildade para admitir a si mesmos, os dons que Deus deu e as lacunas com as quais ele nos deixou. Dentro de nós, então, existem duas diferentes estimativas do eu: a avaliação intelectual ou auto-estima objetiva que se aproxima da realidade; e a reflexão sobre todos os pensamentos e sentimentos que temos de nós mesmos desde criança e durante o subseqüente desenvolvimento; "nosso sentimento de autovalorização" ou auto-imagem.

A existência dessas duas diferentes estimativas é claramente visível em pessoas levemente neuróticas, para as quais a constante e real sensação da própria insignificância faz parte da sua auto-imagem. Quando as pessoas se valorizam, elas se perturbam, sentem-se hipócritas por aceitarem a boa opinião que delas faz o público. Entretanto, feito um auto-exame, por escrito e analiticamente objetivo, as mesmas são capazes de classificarem-se com alto número de pontos. Terminado o exame acham que o resultado erroneamente exagerou o seu real valor e, entretanto, não podem, honestamente, mudar uma única resposta. Tal experiência pode ser constrangedora para a pessoa analisada desde que sua auto-imagem objetiva, e subjetiva surgem abertamente em conflito (isto não significa que auto-imagem é sempre mais baixa que a avaliação atual; poderá ser igualmente exagerada na outra direção).

A auto-estima objetiva é como uma fita de vídeo-tape - mostrando à pessoa seu próprio valor. Com o ataque da cegueira, a fita reflete uma súbita e terrível queda na valorização. Ela era um ser completo, agora é um mutilado. Estava seguro da sua masculinidade, agora tem dúvidas atrozes. Não só perdeu a visão, mas também não pode confiar nos outros sentidos. Seguro de sua orientação através da vida, agora não possui nenhum contato realmente seguro. Está sem o alívio, sem a "cor" do campo visual. Numa vida sem luz, ele está sozinho e sem confiança no amor. Não pode mais ver as coisas belas e nem as que lhe proporcionavam prazer. Antes livre para ir e vir, agora encontra-se imobilizado, retrocedeu à infância. Não pode sequer ler ou escrever, e sua comunicação face-a-face com os semelhantes, está dificultada. É tão difícil estar a par dos acontecimentos que o mundo passa por ele. As oportunidades de recreação, das quais precisa agora mais do que antes, desapareceram. Milhares de coisas que normalmente podia fazer com facilidade, até de um modo inconsciente, agora lhe causam transtornos, frustrações e dores. Seu emprego perdido e uma carreira bem planejada. Sua subsistência é mais dispendiosa e, no entanto, suas rendas diminuíram. Em tudo que fazia mostra-se agora cada vez mais dependente e incapaz. Ele desceu na escala de valores da comunidade, e dentro da família lhe é imposto um papel secundário; praticamente perdeu sua individualidade e não é mais aceito por si mesmo.

Sua auto-avaliação objetiva recebeu um golpe arrasador. Para aceitar este golpe ele deverá recomeçar sua vida do princípio.

O que acontecerá à sua auto-imagem - sua auto-avaliação subjetiva? Muitos estudos precisarão ainda ser feitos sobre os efeitos de uma deficiência grave sobre a auto-imagem.

Nas suas origens, na nossa infância, a auto-imagem era o produto do nosso conhecimento limitado do eu e das coisas que as pessoas (nossos pais, irmãos, irmãs etc) diziam a nosso respeito, ou do que pensávamos que diziam. Nossos sucessos e fracassos quando adolescentes e adultos também produziram efeitos, mas quando eles surgiram já estava formado, na nossa auto-imagem, um básico e "duro núcleo", um cerne que na maioria das vezes é impenetrável às mudanças.

Mas, podemos dizer com segurança que num certo sentido o contrapeso de todos na vida consiste em estabelecer um equilíbrio com sua auto-imagem. Sob a série de golpes traumáticos que a cegueira desfere, aquele equilíbrio pode ser facilmente atingido. As novas cargas poderão ser pesadas demais para o cego suportar e o resultado é uma enorme desordem na formação total da personalidade e a morte da auto-imagem.

5. Perda da organização total da personalidade. Em conclusão, vamos considerar o que acontece à personalidade como um todo, sob estes vários golpes. Cada um leva para sua cegueira um conjunto diferente de sentimentos assim como uma personalidade diferente; certamente a cegueira em si cataloga as pessoas em moldes diferentes. Entretanto, ela tem o poder comum de transtornar e destruir uma vida inteira de organização da personalidade. Tem esta capacidade não por alguma peculiaridade da e, mas porque, como todas as deficiências graves, é um golpe constituído, como já vimos, de uma série de golpes, todos de per si, bastante graves, que atinge um padrão de vida completo.

Vivemos numa civilização na qual, aparentemente, poucos têm fortes defesas contra os traumas e choques. A medicina está estudando sobre choques físicos, e as misteriosas reações do nosso aparelho físico aos traumas físicos; a psiquiatria estuda os choques psíquicos para compreender melhor os traumas psíquicos. Indivíduos aparentemente sadios e ajustados à vida, subitamente, perdem o ajustamento psíquico, tornam-se desorganizados em sua personalidade - e o motivo (se não a causa) é somente um simples e único golpe - tal como a perda de um emprego. Os indivíduos podem sucumbir sem uma razão aparentemente importante e nos exames surgem uma série de insignificantes traumas responsáveis pelo choque.

Qualquer que seja a explicação, em geral, concorda-se em que todos somos material potencial para alguma espécie de transtorno, ou de dificuldade emocional. Talvez nunca nas nossas vidas soframos estas dificuldades, entretanto, somo sempre vulneráveis e alguns golpes graves (possivelmente insignificantes em si, mas para nós, graves) que nos causará problemas. Muitas vezes discernimos nas pessoas que nos rodeiam sinais de tensão que nunca suspeitamos e dos quais eles próprios não estavam conscientes; sinais que nos lembram quantas pessoas, em nossa época, vivem como um feixe de nervos, irreconhecíveis e ainda debaixo de controle, mas dependendo apenas de uma centelha estática para lançá-los fora da ordem e realçar alguns problemas reais da personalidade.

É com este fundo de tensões e insegurança que a pessoa cega enfrenta sua cegueira. A personalidade que ele traz, suas forças e fraquezas são agora muito importantes. Sua filosofia e suas metas na vida farão diferença na natureza e na força dos golpes que ele recebe. Mas é sua personalidade, seu ego, que sofre estes múltiplos golpes.

Para muitas pessoas, se não para a maioria, a cegueira é, conseqüentemente, capaz de disparar algumas respostas neuróticas. Praticamente para todos há um período de severa "depressão real" com, no mínimo, alguns reflexos neuróticos. E quando o período de depressão termina, a personalidade se reorganiza ou se organiza dentro de novos padrões.

Alguns evitam, rápida ou gradualmente, enfrentar os problemas que a cegueira acarreta, dizendo a si mesmos e ao mundo que estes problemas são inconseqüentes e que a cegueira é "não tanto uma deficiência, mas uma inconveniência secundária - de menor valor". Alguns fogem ao problema por anos ou por uma vida inteira dizendo que, apesar do constante diagnóstico médico em contrário, sua cegueira não é permanente: a situação vai melhorar, naturalmente, ou que novas pesquisas vão encontrar a resposta, ou que Deus lhes concederá um milagre (não com a certeza dada pela fé, mas com a presunção de que Deus deve a eles um milagre).

Ainda outros escapam de encarar a fraqueza que existe neles mesmos, e que foi revelada pela cegueira, pondo a culpa na própria cegueira. Para eles, a cegueira é uma tragédia insuperável e é inútil continuar a tentar.

Outros procuram na cegueira uma fuga, por exemplo: o tipo de pessoa que precisa apenas de uma desculpa para finalmente poder viver no luxo da dependência. A oportunidade de ser servida e talvez gradualmente escravizar uma dependência aqueles que a cercam é, freqüentemente, uma oportunidade longamente procurada própria estas pessoas. Discutem sobre as dificuldades que atravessam, talvez façam até uma heróica demonstração da tentativa de sobrepujá-las (uma exibição suficientemente convincente para elas). Mas, na realidade, é muito mais fácil para elas serem dependentes, apoiadas numa boa desculpa do que era sentir-se dependente, mas sem ter razão plausível além de sua própria natureza.

Neste caso, a cegueira não deu a ela nenhuma nova estrutura de personalidade, mas, simplesmente, deu ênfase àquela que já existia. O mesmo parece acontecer em muitos casos (embora não em todos).

Isto não quer que a personalidade necessariamente parecerá a mesma depois da cegueira. Correntes que há muito fluíam nas profundezas podem vir à tona. A pessoa que durante muito tempo manteve sua hostilidade submersa pode não controla-la mais; sua hostilidade e ódio tornam-se aparentes aos outros. O radical, que levado por necessidades íntimas, se revolta contra os pais, sociedade, moral, Igreja ou qualquer coisa, sem razões conscientes, continuará a mostrar estes sintomas particulares, mas agora mais claramente, como um grito de revolta.

Ansiedade poderá surgir na pessoa que recentemente perdeu a visão; poderá permanecer com ela até a morte, a não ser que com ajuda psiquiátrica possa controla-la. Esta ansiedade pode, em qualquer cego como na pessoa que possui visão, manifestar-se com sintomas diferentes: úlceras gástrias, fortes dores de cabeça sem nenhuma relação com a cegueira física em si, palpitações, suor nas mãos, infecções duradouras, reumatismos, artrite, perda da voz e (pior de todos para um cego) perda da audição. Outrasfunções sensoriais poderão ser atingidas: a pessoa cega pode tornar-se incapaz de ler, aprender Braille, porque não "sente", quando de fato a perda da sensibilidade nos dedos poderá ser apenas um resultado direto das dificuldades psicológicas; poderá desenvolver um desajeitamento no andar que a impedirá de fazer o que ela pensa mais desejar - mover-se livremente. Estas e centenas de outras espécies de sintomas físicos poderão aparecer, todos como resultado de sua cegueira, e todos eles como um grande desafio a medicina psicossomática.

A hostilidade poderá surgir aonde nunca existiu antes, assim como uma aparente aceitação de sofrimento, um falso martírio que não procura submeter, mas punir. Vangloriar-se e procurar elogios, podem ser sinais de insegurança interior e uma necessidade de amor. O cego que duvida da sua virilidade (ou feminilidade) pode torná-la mais patente quando procura prová-la, por atos sexuais e demonstrar sua "independência" num casamento desaconselhável ou mesmo numa série deles.

A explicação para a desorganização interna da pessoa cega pode estar na sua atitude e nas relações para com outros cegos. Poderá escolher suas companhias entre os que têm alguma deficiência ou afastar-se completamente de outras pessoas cegas e até mesmo demonstrar ciúmes e sentimentos de desconfiança.

Novamente, podemos chegar a certas conclusões (mas devemos ser cuidadosos em nossa racionalização) levando em consideração a atitude da pessoa cega para com as organizações especiais. Certificar-nos-emos se eles procuram dependência na organização ou se, ao contrário, querem ajuda dos que as auxiliarão a se tornarem independentes. Podemos notar sinais ocasionais de ressentimento e hostilidade contra organizações de ambas espécies, e dos sentimentos e das circunstâncias que as cercam chegando a reclusões sobre a atitude e ajustamento do indivíduo em relação à sua cegueira. (Aqui precisamos ser muito cuidadosos para não racionalizarmos e não defendermos nossos interesses procurando explicar as críticas da pessoa cega como resultado de sua hostilidade e de sua dependência).

O último grande golpe da cegueira é aquele que as múltiplas experiências traumáticas exercem sobre a organização total da personalidade. Reunir todos os fragmentos é o grande desafio às associações para cegos. Porque aqui a própria personalidade foi ferida mortalmente.


CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver com ela. São Paulo [s.n.] 1968, cap.7.

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]



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