CONVERSANDO SOBRE SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA
- UMA OVERDOSE PARA NOSSA PREPOTÊNCIA; UM TSUNAMI EM NOSSO ORGULHO.


   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, 11 de agosto de 2010.

Sexualidade é um tema nem sempre tratado com naturalidade e espontaneidade pela grande maioria das pessoas, pois esta tarefa implica o (re)conhecimento e a confrontação de valores, conceitos e preconceitos tão bem guardados e até mesmo escondidos nas profundezas da nossa intimidade. A vinda à tona de determinados sentimentos, pensamentos e atitudes provoca, por sua vez, a saída ou o abandono de um lugar no qual nos abrigávamos à sombra de uma comodidade alienante. Querendo, a todo custo, evitar em nós o surgimento de constrangimentos e mal-estar nos convencemos de que os conhecimentos já elaborados nos são suficientes e nada mais precisa ser repensado.

Deficiência é outro tema que também nem sempre é tratado com naturalidade e espontaneidade pela grande maioria das pessoas, pois está constantemente revestida com nossos mitos, tabus e fantasias - frutos do desconhecimento e do grande receio que ainda trazemos em nos percebermos como aprendizes do convívio com a diferença. Esta dificuldade revela nossa incapacidade em considerar que os episódios da vida acontecem e se desenvolvem não apenas pelos modelos convencionais estipulados pelo homem, mas também por vias alternativas. A Aceitação desta possibilidade implica a educação e a recomposição dos nossos sentimentos, pensamentos e atitudes e muitas vezes não estamos dispostos a tais mudanças porque isto significa a exposição das nossas vulnerabilidades. Como ainda temos a tendência exacerbada de pensar que não possuímos estas vulnerabilidades, lacunas ou inadequações, preferimos nos isolar na pseudo serenidade tecida pela negação e, de vez em quando, nos permitimos algumas lágrimas diante da dor e da necessidade do outro para não esquecermos de que, afinal de contas, somos seres humanos.

A conversação sobre sexualidade e deficiência é menos ainda estabelecida de modo natural e espontâneo pela maioria da grande maioria das pessoas porque, se isoladamente a abordagem da sexualidade e da deficiência consiste overdoses para a nossa prepotência quanto a sermos detentores de supostos saberes, esta associação agora representa um verdadeiro tsunami para o nosso orgulho em reconhecermo-nos como seres limitados, falíveis e medrosos. Assim, para adiarmos a erupção dos nossos melindres, negligenciamos, tangenciamos ou até mesmo omitimos a realidade da presença da sexualidade nas pessoas com deficiência.

Mas como evitar falar em deficiência quando esta pode surgir a qualquer momento na vida de qualquer pessoa? Mas como evitar conversar sobre a sexualidade quando esta sexualidade, sem prevenção e desorientada, pode causar a deficiência ou a deficientização a partir de doenças sexualmente transmissíveis, estupros e violências?

Com frequência, vivenciamos duas espécies de discursos: um, completamente encharcado por um narcisismo institucional ou intelectual, banaliza tanto sexualidade quanto deficiência a uma simples frase "todos somos iguais" e não o somos; outro, repleto de vitimização e de indigência intelectual, reduzindo a omissão de comportamentos interativos à frase "não estamos preparados para isto", quando nem todos estamos e somente passamos a nos enriquecer com estes conhecimentos na busca da (in)formação e na convivência diária com a diferença. Como nos sentiríamos ao conviver com pessoas que tudo sabem e tudo podem, não abrindo espaços para intercâmbios e trocas desde sociais até afetivas? Como nos sentiríamos ao procurarmos o médico e ele nos dissesse que, em sua formação, não recebeu conhecimento sobre o tratamento da nossa patologia e não se mostrasse disponível à atualizações? Agora, que tal nos colocarmos nestas situações e procurarmos entender o que acontece quando deste modo nos comportamos em relação aos outros?

Assim procedendo, talvez tenhamos mais facilidade para o entendimento de que falar sobre sexualidade, sobre deficiência e sobre sexualidade e deficiência é um convite à aprendizagem da escuta do outro, da leitura das suas necessidades nas entrelinhas do seu estar no mundo, percebendo nuances e particularidades que o tornam individual e singular. Mais do que isto, possamos perceber então que falar sobre sexualidade e sobre deficiência significa falar de e em nós - frágeis seres humanos transfigurados pelas máscaras culturais que determinam papéis, funções e comportamentos estereotipados para todos.

Talvez, esta reflexão pareça cruel e assemelhe-se a uma incisão cirúrgica de grandes proporções em nosso ego. No entanto, que mudanças acontecem sem mudanças, sem remexidas, sem oxigenações? Análise, avaliação e descarte de muitos de nossos sentimentos, pensamentos e atitudes podem causar muita dor, mas geralmente dói mais ainda nos darmos conta de que estamos nos tornando reféns da nossa ignorância e gerando constrangimentos e sofrimentos para nós mesmos e para os outros através da frieza, da omissão e da intolerância.

Hoje, expressões como acessibilidade e desenho universal estão bastante presentes e muitas pessoas logo associam tais expressões à construção de rampas, colocação de pisos táteis, aquisição de tecnologias assistivas e de tantas outras facilidades para a mobilidade social das pessoas com deficiência. No entanto, em todo este processo, a antiga e tão real "barreira atitudinal" é quase sempre deixada de lado. É excelente termos escolas ou espaços na área da saúde instrumentalizados ergonômica e tecnologicamente para o recebimento de pessoas com deficiência, mas em quantos destes locais estas mesmas pessoas deixam de participar porque não houve o acolhimento humano indispensável para uma intercomunicação efetiva?

A convivência e o desenvolvimento da atividade profissional implicam reeducar-se com um olhar sensível e uma escuta disponível às próprias dificuldades e facilidades, direcionando o hábito deste comportamento para as demais pessoas. Então, juntos organizarmos e construirmos as estratégias compatíveis para o atendimento das necessidades específicas de uma determinada deficiência para que, através da corresponsabilização e do trabalho em rede, possamos envolver nosso grupo social nas mudanças atitudinais.

Informações sobre sexualidade e sobre deficiência estão circulantes em livros, mídias, campanhas e tantas outras criatividades na ânsia pelo enfrentamento ao desconhecimento, mas quantas destas informações estão verdadeiramente disponíveis de forma adequada ao entendimento, assimilação e compreensão pela pessoa com deficiência? Vamos a um pequeno exercício da nossa prática. Em um determinado posto de saúde há um local para a disponibilização de preservativos. Quais são os mecanismos empregados pelos profissionais deste posto para a informação efetiva de uma pessoa com deficiência visual sobre a existência deste local? Quem ocupa-se com o esclarecimento desta pessoa sobre o modo de usar este preservativo se na embalagem há indicações? No entanto, estas indicações não são úteis para a pessoa com deficiência visual, pois ela obviamente não tem acesso as mesmas. Em uma determinada escola, o professor desenvolve com seus alunos uma atividade sobre sexualidade e, injustificavelmente, é comum que deixe de lado o aluno com deficiência e passe esta responsabilidade para um professor especializado, esquecendo-se de que, na verdade, ele é o responsável pelo processo educativo inclusive daquele aluno e de que o professor especializado tem como uma das funções a coconstrução, junto a este professor, de esclarecimentos e estratégias específicas e não a sua substituição.

Os constantes alertas trazidos pelas estatísticas e pela observação da realidade mostram-nos que "as coisas não vão bem" e, por isto e muito mais, torna-se urgente repensar nossa prática profissional e desenvolver o bom-senso, admitindo que a vaidade que impulsiona atitudes inadequadas é tão prejudicial quanto a timidez que sustenta a omissão. É preciso equipar-se mas não apenas de tecnologias, de informações nas diversas áreas do conhecimento e de estratégias, mas principalmente de sensibilidade para interagir com a diferença se quisermos realmente combater o vírus do preconceito e nos libertarmos da ignorância.

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