ATIVIDADES DE VIDA DIÁRIA: um processo de emancipação.

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, 27 de agosto de 2010.


Hoje em dia, ainda é bastante frequente ouvirmos que a pessoa com deficiência visual, pelo fato de não enxergar ou ter sua visão reduzida, está impedida para a realização de atividades básicas e tarefas de pequena ou média complexidade presentes no cotidiano de todos nós. Este conceito generaliza-se e toma proporções mais acentuadas de acordo com a idade, o gênero, o grau visual e a existência ou não de outros comprometimentos associados.

Consideradas não apenas limitadas, mas especialmente impedidas, as pessoas cegas ou com baixa visão passam a ser alijadas de vivências e experiências diárias. Com esta atitude, o outro social desconsidera suas possibilidades e capacidades funcionais e legitima para a pessoa com deficiência visual a estruturação de uma passividade perigosa para o desenvolvimento de sua personalidade de forma sadia e independente, pois esta pode tornar-se refém da vontade e do julgamento dos seus pretensos "cuidadores".

Ancorada na fantasia e no mito da incapacidade, tecidos culturalmente pelo desconhecimento e pela falta de bom senso, dois fenômenos se estabelecem: a escravização, mútua ou não, das pessoas que enxergam para o cumprimento dos anseios, desejos e necessidades de quem não enxerga; a vinculação da deficiência visual a outros comprometimentos ou distúrbios imaginários que somente existem porque persistem o comodismo e a carência de estímulos, incentivos e informações para a aprendizagem da autonomia e da independência.

Neste artigo, a intenção é justamente trazer ao conhecimento e à reflexão um processo de emancipação chamado Atividades de Vida Diária, apresentando-se razões para a sua adoção e seu uso pelos protagonistas desta aventura e desafio de viver a vida de um modo diferente.


ATIVIDADES DE VIDA DIÁRIA - que processo é este?

Este processo diz respeito a uma série de conteúdos, técnicas e metodologias que proporcionam, em um determinado tempo, o desenvolvimento e o refinamento de habilidades intelectuais, emocionais, manipulativas e sensoperceptivas necessárias para a solução de problemas e de situações práticas e rotineiras enfrentadas inevitavelmente pelas pessoas durante a vida.

As Atividades de Vida Diária (AVDs) abrangem: - a mobilidade funcional (deslocamentos significativos em ambientes restritos e amplos, uso de escadas e elevadores, organização de mapas mentais, localização no espaço, ...); - os cuidados pessoais (higiene, vestuário, medicação, hábitos comportamentais, ...); - a comunicação funcional (leitura, escrita, compreensão de textos e conversas, solicitações, ...); - a expressão sexual (conhecimento e manifestação dos sentimentos, informação e administração das manifestações da sexualidade e da sensualidade, comportamentos e atitudes de prevenção, ...); - a administração doméstica (preparo de alimentos, organização e limpeza da casa, abastecimento, segurança doméstica, reparos domésticos, ...); - a capacidade para a vida em comunidade (relacionamento com parentes, amigos e colegas, preparação de encontros e festas, recreação conjunta, trabalhos cooperativos, ...); - a administração de tecnologias assistivas (uso dos talheres, de tesouras e agulha, do telefone, do gravador, do rádio, do computador, ...); - administração de dispositivos ambientais (uso de ferramentas e instrumentos de ação sobre o ambiente, consertos básicos, ).

O desenvolvimento de um programa em Atividades de Vida Diária não significa a profissionalização da pessoa cega ou com baixa visão para o desempenho de uma determinada tarefa, pois a sua realização está muito mais relacionada ao saber como executar uma ação ou experiência do cotidiano do que ao seu conhecimento de um saber acadêmico. Com esta perspectiva, torna-se muitas vezes suficiente a transferência do conhecimento do grupo familiar, de amigos ou professores sobre um conteúdo a ser compartilhado com a pessoa com deficiência visual, tal como no caso de vestir-se, tomar banho, preparar um lanche rápido, arrumar a cama, acender o fogão, por exemplo. . No entanto, há situações em que este saber fundamental pode ser disponibilizado por um profissional especialista em uma determinada função como, por exemplo, um eletricista, um jardineiro, um encanador, uma costureira, um professor de Orientação e Mobilidade.


Razões para a adoção e uso do programa de Atividades de Vida Diária

O ensino e a aprendizagem da maneira de realizar e resolver efetivamente tarefas rotineiras ou eventuais pela pessoa com deficiência visual trazem, não somente para si, efeitos benéficos que ultrapassam as fronteiras do presente e do físico, mas abarcam o futuro e suas (re)ações afetivas, emocionais, intelectuais e sociais. Entre tantas e tantas razões que justificam a existência e a aplicabilidade deste processo, é possível destacar como chaves motivadoras os seguintes pontos:

1. Aquisição da autonomia; 2. Desenvolvimento de habilidades e papéis sociais; 3. Mudança de hábitos e do próprio estilo de vida; 4. Busca da solução de problemas e de situações do cotidiano; 5. Veiculação e articulação dos conteúdos pedagógicos desenvolvidos na escola ou em outros ambientes acadêmicos, facilitando sua compreensão e assimilação; 6. Elevação da autoestima e redução do isolamento social; 7. Redução ou rompimento de mitos sobre a passividade e acomodação da pessoa cega ou com baixa visão; 8. Fortalecimento do sentimento de eficiência, eficácia e competência; 9. Estabelecimento de relacionamentos fundamentados na afetividade e não em situações de dependência ou conveniência e 10. Rompimento do fenômeno de escravização do outro social, tornando-se a satisfação de alguma necessidade da pessoa com deficiência visual uma opção e não uma imposição.

Deste modo, é de fácil compreensão que os conteúdos e informações desenvolvidas em Atividades de Vida Diária, de maneira (in)formal ou ludica, podem trazer a todos profundas e diversificadas contribuições nos diferentes aspectos da constituição do ser como ser humano.

A atribuição ou não de importância para a participação neste programa e processo representa, entretanto, uma ação iniciada a partir da decisão tomada pelas pessoas envolvidas pelos efeitos e consequências da deficiência visual e não tão-somente pela própria pessoa cega ou com baixa visão, quando esta vive e convive em um grupo. Contudo, é sempre importante que esta decisão individual ou coletiva seja o resultado de um sentimento genuíno de emancipação e da vontade sincera de enfrentamento das dificuldades para o crescimento humano desde a infância até o término da velhice.

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]


VOLTAR À PÁGINA PRINCIPAL