FALAR SOBRE MEDICAMENTOS E DEFICIENTIZAÇÕES NA AIDS ASSUSTA?

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Fisioterapeuta CREFITO 6159 F
   Doutora em Ciências do Desporto e Educação Física
   E-mail soniab.27@terra.com.br
   Porto Alegre, março de 2011.

Tenho refletido sobre a pouca visibilidade trazida pelas campanhas e pelas informações acerca da AIDS quanto à possibilidade de reações adversas da combinação de antirretrovirais, ou o coquetel, causar deficientizações. Impossível que os peritos neste tema não observem esta forte relação e não identifiquem o crescente indicativo de pessoas vivendo com a síndrome apresentarem, aos poucos ou repentinamente, esta ou aquela deficiência, este ou aquele impedimento e limitação.

Então, me questiono se os especialistas e os responsáveis por programas e políticas de prevenção, tratamento e enfrentamento a AIDS estão interessados em que esta informação torne-se pública. Não sei se é este o raciocínio utilizado por eles, e muito menos sei se existe tal raciocínio, mas a divulgação desta notícia poderá ter um efeito decisivo na adesão ao uso da terapia retroviral. No momento da indicação medicamentosa e na resolução da continuidade desta adoção prolongada, provavelmente muitas pessoas ponderam e perguntam-se sobre vários aspectos implicados na sua opção. Opção, aliás, fortemente relacionada e dependente à capacidade de cada um do entendimento, adaptação, negociação e replanejamento diante das adversidades da vida; profundamente vinculada ao seu nível de autoestima, às expectativas e perspectivas de vida, à vontade e ao desejo de ser feliz, apesar de tudo.

Uma indagação que frequentemente se manifesta é "vale a pena a adesão ao tratamento da AIDS, se mesmo com ele não vou me curar?". Deste argumento, que aqui registro sem nenhum julgamento ou juízo de valor, outras considerações materializam-se no pensamento de algumas pessoas e são significativas para sua decisão: "por que vou usar a medicação, prender-me a horários; levar diariamente comigo pelo menos uma dose para eventuais necessidades; ter o transtorno de carregar, em alguns casos, caixinhas ou bolsinhas apropriadas para a refrigeração de determinados medicamentos; buscar mensalmente os antirretrovirais nos locais de dispensação e preparar-me com a quantidade necessária de medicamentos para o período de férias ou outros deslocamentos, se leio e escuto que posso ter reações adversas devastadoras, lesões neurológicas, alterações psíquicas e na saúde mental, distúrbios visuais ou auditivos e motores, para além de surgirem doenças oportunistas e, finalmente, a morte?".

No começo, os especialistas apressaram-se em disseminar a afirmativa "AIDS mata" na vã tentativa de frear a proliferação do HIV. No entanto, a pandemia se instalou e junto com ela o caos do pânico e do imobilismo de algumas pessoas diante do diagnóstico. Venderam a ideia do terrorismo, mas felizmente muitas pessoas infectadas tiveram a lucidez para entenderem que não é a AIDS que mata, mas a nossa condição mortal de ser humano que irá viver este rito de passagem independente da doença. Com isto, lutaram pelo seu direito à vida e à morte dignas, por sua inclusão em programas e políticas de saúde, pela disponibilização de medicamentos específicos e especiais, por tantas outras conquistas e fizeram a opção espontânea pela adesão ao tratamento, sem arrependimento e sem dúvidas por serem fortes, conscientes e determinadas.

Sem a pretensão do convencimento, pois a cada um, quando possível, cabe o direito de fazer suas escolhas, a adesão ao tratamento representa muito mais do que um investimento, uma aposta na probabilidade dos efeitos da medicação agirem intensamente somente na multiplicação do vírus e terem uma reação prejudicial de médio ou pequeno impacto sobre os órgãos e funções corporais, mentais e emocionais, a adesão contínua possibilita a espansão da oportunidade e do prazer em viver, do relacionar-se e interagir com o ambiente, do autodescobrir-se e reeducar seus sentimentos, pensamentos, posturas e comportamentos. Estes já não constituem importantes ganhos na adesão?

É possível que deficientizações apareçam, mas este surgimento não é exclusivo da terapia específica da AIDS: outras medicações para outras patologias também podem trazer seus paraefeitos, especialmente quando não utilizadas adequadamente, na sua dosagem, cuidados e horários corretos. Depois, não são todas as pessoas vivendo com AIDS que necessariamente são afetadas pelas deficientizações e, caso se evidenciem, elas podem ocorrer com maior ou menor intensidade, com maior ou menor dano. No entanto, é preciso avaliar que a não adesão ao tratamento antirretroviral traz muito mais prejuízos corporais e emocionais, pois o sofrimento é intenso; o perigo constante de hospitalizações não é reduzido ou eliminado; as doenças oportunistas vão se fazer presentes de qualquer forma; a cronificação do estresse, as incertezas, as inseguranças e o preconceito certamente irão se potencializar.

Como anteriormente mencionei, não posso afirmar que seja o receio da interferência na decisão pelo uso da medicação exatamente o motivo pelo qual ainda persiste tanta lentidão na abordagem e divulgação pública do fenômeno da deficientização e, muito menos, que seja esta a maior preocupação dos médicos, profissionais dos CTAs e SAEs, dos governantes e dos administradores de programas de prevenção e enfrentamento da AIDS. Contudo, embora esta seja uma reflexão densa e dolorida, a deficientização é uma realidade e sua discussão precisa ser feita em algum espaço. Então, que seja entre os responsáveis pela conscientização do povo, entre os representantes da sociedade civil organizada, entre os profissionais da saúde e da educação e de áreas correlatas, entre as pessoas que vivem com HIV/AIDS e aquelas envolvidas com a construção sadia da rede social a fim de novas abordagens e metas serem definidas e a elaboração de diferentes estratégias surgirem com mais eficiência e eficácia.

Estas são preocupações, resoluções e sinalizações bastante complexas e delicadas, porém, se não forem concretizadas estaremos sendo coniventes com a negligência, com a passividade e com a irresponsabilidade de não difundir a possibilidade da deficientização na AIDS e, assim, pelo desconhecimento, manter a grande maioria da população brasileira afastada da informação e, consequentemente,continuará pensando que atitudes preventivas já não precisam ser adotadas com tanta, severidade, banalizando esta síndrome e justificando seu comportamento pela existência de medicamentos que já dão conta da cronificação da doença e do "aumento da longevidade". Só que muitas destas pessoas também desconhecem os mecanismos internos e estruturais deste processo de ampliação e de como é esta qualidade de vida.

Este, no entanto, não significa o pedido de vitimização da pessoa que (con)vive com a AIDS, mas o convite para uma análise equilibrada e raciocinada das diferentes facetas interventivas da síndrome no seu cotidiano e no seu corpo.


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