LINGUAGEM CORPORAL E CEGUEIRA - a IMPORTÂNCIA DA VISUALIZAÇÃO.

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Fisioterapeuta CREFITO 6159 F
   Doutora em Ciências do Desporto
   Porto Alegre, março de 2011.

O corpo, através do gesto, da mímica facial e das reações conscientes e involuntárias, tanto reafirma quanto nega nossas ideias ou pensamentos durante a comunicação. Esta linguagem corporal, tão bem interpretada por algumas pessoas e desconhecida por outras, facilita a interlocução quando definida e adequada. Porém, utilizada ou percebida sem objetividade ou real entendimento, será muito mais motivo de entrave ou inviabilização da fluidez na comunicação. Exemplos bastante atuais destas dificuldades são encontrados na troca de mensagens escritas pelo celular e pelo computador (mails, chats, MSN), embora as reações venham algumas vezes sinalizadas.

A fala , o tom e o timbre de voz são recursos importantes para a percepção não apenas daquilo que é dito, mas também revelam a mensagem subliminar, o sentimento mesclado às palavras e o estado intelectual e emocional dos comunicantes. No entanto, não são recursos suficientes para a captação mais próxima da integralidade da intenção contida ou desencadeada pela mensagem. Muitas emoções e pensamentos parecem se manifestar pelas variadas formas do gesto, do olhar e das expressões faciais. A audiência de programas de rádio, os contatos e diálogos mantidos pelo telefone ou pela internet, através de programas de comunicação por voz em tempo real, sem o uso da webcam, demonstram nitidamente os exercícios e desafios diários para a decodificação mais adequada da comunicação sem a visualização da linguagem corporal. Entretanto, o conhecimento visual prévio e a possibilidade do conhecimento visual futuro do interlocutor são fortes perspectivas do desentrave interpretativo porque toma-se contato com a recordação ou com o entendimento dos seus hábitos e reações corporais a determinados assuntos e informações.

Nesta perspectiva, entende-se as palavras faladas apenas como um elemento do processo comunicativo, pois a expressão facial ou gestual envolvida em qualquer declaração é capaz de mudar todo o seu sentido e rumo. Um insulto, acompanhado por um sorriso franco ou pela fisionomia alegre, pode transformar-se em saudação, mas se arrematado por um sorriso cínico ou seriedade, revela-se um escárnio, uma afronta. A projeção do queixo durante a conversação, o encolher e o meneio de ombros, o arquear ou aproximar das sobrancelhas, o balançar da cabeça, são, por si, palavras, frases e sentenças algumas vezes bem mais importantes, significativas e esclarecedoras que muitas palavras faladas.

Impossibilitada de ver as mudanças e nuances das diferentes linguagens corporais, a pessoa pode desorientar-se e não se apropriar completamente da intenção do interlocutor, prejudicando e enganando-se com esta comunicação oral. Se não existirem as palavras nesta conversação, mesmo com uma interrupção ou silêncio breve, a não percepção da expressão fisionômica e corporal potencializa a dúvida e pode gerar momentos de embaraço, perturbação e constrangimento no interlocutor sem esta visualização. Tal dificuldade acarreta e frequentemente desencadeia a imaginação e prejulgamento do que possa estar acontecendo, sem haver necessariamente a correspondência com a verdade e o intercâmbio comunicativo interrompe-se ou alterna-se em assuntos, sem uma continuidade natural.

Neste ponto, abre-se a reflexão do quanto o cego total está prejudicado na captação das mensagens circulantes no ambiente e sobre a qualidade da sua absorção e filtragem real da comunicação.

Tendencialmente, pensa-se ou vincula-se imediatamente estas perdas trazidas pela cegueira para a leitura da linguagem corporal aos shows, peças teatrais, palestras, filmes e outros eventos grandiosos, como se a pessoa cega vivesse em função destes episódios e tão-somente destas possibilidades. De qualquer maneira, o recurso da audiodescrição veio amenizar algumas dificuldades de compreensão de determinados acontecimentos e facilitar a interação com o contexto, embora esteja ainda em fase inicial e aos poucos venha ganhando o seu espaço.

Entretanto, a pessoa cega vivencia estes obstáculos e embaraços na sua rotina e em situações consideradas aparentemente simples, mas algumas vezes bem mais significativas e preponderantes na construção da sua vida. Conversas incompletas, palavras omitidas e decisões ou julgamentos contrários ou nebulosos podem então acontecer sistemática ou eventualmente com seus pais, irmãos, amigos, cônjuges, colegas de trabalho, alunos, diarista, médico e em tantas outras interações e circunstâncias, propiciando a pessoa cega a idealizar ou construir uma falsa realidade, quer seja no aspecto positivo ou negativo .

O grau de incompreensão pelo outro sobre esta limitação da pessoa cega no sentido de captação e interpretação dos gestos corporais, expressões fisionômicas e reações silenciosas tomadas por algumas pessoas é tão absurdo em alguns momentos que não é raro encontrar-se a sua estereotipização como confusa, alienada ou desconfiada. No entanto, aqui também cabe uma reflexão, pois por mais ingênuos que possam parecer, as pessoas com cegueira sabem, de algum modo, que no seu ambiente há quem deliberadamente usa ou aproveita-se da sua cegueira para sinalizar algumas informações as quais não faria diante de alguém que enxerga.

Há quem diga ser esta questão de fácil resolução através da manifestação verbal feita com mais clareza e franqueza. Sabemos, no entanto, o quanto é difícil para a grande maioria das pessoas adotar esta postura, pois estamos acostumados a esconder e omitir de nós mesmos muitos dos sentimentos que circulam em nossa intimidade, porque não queremos confrontar-nos com a sua existência e a necessidade de nos esforçarmos mais para a nossa reeducação íntima. Acham então que isto torna-se banal e corriqueiro porque o interlocutor é uma pessoa cega? Obviamente, não! Diante de nós está uma pessoa, uma testemunha auditiva da nossa fragilidade e hipocrisia, e não desejamos mostrar para todos as nossas mais particulares tendências afetivas, comportamentais e emocionais.


Alguém também pode sugerir que esta leitura gestual e facial seja feita por uma terceira pessoa... e aqui está outra grande situação de análise: a leitura e a interpretação será justamente feita por mais um outro, o qual, provavelmente também tem seus princípios, julgamentos, juízo de valores e poder de captação diferenciados ou não da pessoa cega. Dificilmente será uma decodificação isenta ou imparcial. Representa, em determinadas circunstâncias, uma grandiosa ajuda. No entanto, não poderá ser generalizada como solução para todas as situações. Além do mais, há ocasiões nas quais não cabe a presença de uma terceira pessoa ou ela não existe ou está indisponível. Do mesmo modo, há há momentos em que a presença de uma outra pessoa passa a ser inconveniente pela situação propriamente dita ou pela inibição que os interlocutores possam sentir por perceberem-se vigiados ou assistidos. Há conversas, assuntos e conclusões que não são favorecidas pela presença de plateia.

Com o registro destas observações, leitor, não tenho a intenção de sugerir que as trocas comunicativas entre cegos e pessoas que enxergam ou outros também sem visão sejam fragilizadas, débeis e sempre imprecisas. Pelo contrário, quero animá-lo para buscar soluções factíveis e realistas para reduzir truncamentos e impasses, fortalecendo-se assim, quanto possível, os vínculos de confiança e credibilidade.


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