DESBRAVANDO A COZINHA
Miguel estava verde de fome. Há muito o pacote de biscoitos já havia sido devorado e, na garrafa, não existia mais nenhuma gota de refrigerante.

- Como a mamãe demora!! Logo hoje a Lurdinha precisou sair mais cedo!

Quanto mais pensava, mais sua fome aumentava.

- Já telefonei três vezes para a mamãe. Na primeira vez, ela estava saindo do consultório do dentista. Na segunda, ela estava fazendo compras no mercado e, nesta última vez, ela estava presa no trânsito por causa de um acidente. E o que eu faço com esta fome? Por que o filho da Lurdinha não ficou com dor de barriga mais tarde?

Miguel se remexia no sofá e não conseguia mais prestar atenção no filme da televisão. Pensava na sua fome, que era muito mais uma vontade de comer do que fome propriamente dita. Pensava também em Julinho, seu amigo de escola. "Julinho tem sete anos e é cego como eu... ele contou que prepara seu lanche. Se ele pode, por que eu não posso?". De repente, decidiu:

- Eu vou fazer um sanduíche e um leite com chocolate pra mim! Sei que na cozinha também tem um bolo de morango que adoro... tiro uma fatia e adeus fome!

E lá se foi o menino para a cozinha, pronto para desbravá-la.

- Hum... gosto de leite com chocolate e açúcar. Mas onde será que posso encontrar o chocolate e o açúcar? O leite deve estar na geladeira, porque sempre escuto a mamãe ou a Lurdinha abrir e fechar a porta quando vão me servir. Acho melhor eu primeiro pegar o leite... pode ser que encontre o chocolate e o açúcar por lá também!

Muito senhor de si, Miguel abriu a geladeira e logo surgiu uma grande dúvida: "onde, nesta imensa geladeira, está o leite?". Ele tateou aqui e ali, encontrando várias caixas. "E agora? Qual delas é o leite? Será que a mamãe guarda todas as caixas de leite na geladeira? Vou escolher uma e colocar em cima da mesa... ou será que levo todas?"

Quando puxou uma das caixas, Miguel esbarra nos ovos e estes vão parar no chão, quebrando vários deles.

- O que será isto? Nunca passei minha mão por esta gosma toda! A mamãe não iria dar pra mim esta coisa horrorosa, dizia Miguel de si para si, sem nem imaginar que aquela coisa grudenta era o ovo, comido todos os dias e, se dependesse de Miguel, também o seria todas as noites.

Com o que pensava ser o leite já em cima da mesa, ele avaliou o que mais ainda faltava.

- Agora, vamos procurar o chocolate, o açúcar, o pão... e onde será que está o presunto e o queijo?

Como havia um armário perto da mesa, Miguel resolveu abrir a porta mais próxima.

- Quantos potes! o que será que tem dentro? Vou abri-los e descobrir.

Ele foi abrindo um por um e quanto mais abria, menos entendia.

- O que será que é isto? Umas pedrinhas duras... não sabia que a mamãe comia pedrinhas! Eu é que não vou comer isto! E aqui tem umas coisas que parecem areia da praia! Quantos potes com esta areiazinha!

Mal sabia Miguel que aquelas pedrinhas duras eram os feijões tão adorados por ele e, em cada um dos demais potes, havia farinha de trigo, sal, maisena e o tão procurado açúcar! Não é preciso nem dizer que no chão, ficavam esparramadas generosas porções dos seus achados!

- Pensando bem, acho que não vou por açúcar no meu leite. Vou procurar o chocolate. Sei que está em uma lata, porque sempre ouço a Lurdinha dizer que vai pegar a lata do achocolatado.

Miguel abre outra porta do armário e fica apavorado: "cruzes, quantas latas? E quantos sacos? Pra que tudo isto? Como vou saber o que é o quê? Aliás, como vou saber qual delas é o chocolate... eu nunca peguei o achocolatado na mão? Sempre que vou beber, já está no copo ou na xícara! Em todo caso, vou pegar esta daqui!".

Assim, a lata de café foi fazer companhia à caixa de suco já sobre a mesa.

- Pronto, agora vou pegar o copo e uma colher. Isto vai ficar uma delícia! Depois, pego o bolo que está em uma vasilha na mesa e o pão, que está no cesto. Mas tem uma coisa... se eu vou fazer o sanduíche, preciso achar o presunto, o queijo e a manteiga. Manteiga... e como se procura uma manteiga? Sei que tem de passar no pão. A mamãe sempre me diz: "Espera que estou passando manteiga no pão!". Como será que a gente passa a tal manteiga no pão? Ah, já sei... deve ser com o dedo!. pensando bem... vou gostar mais de comer várias fatias de bolo em lugar do sanduíche! Em outro dia, faço um super sanduíche pra mim!!.

Miguel põe o copo e a colher na mesa. "Pronto, agora é só colocar o leite no copo". Pegando a caixa, o menino se dá conta de que ela está fechada.

- E agora, como vou abrir isto? A mamãe e a Lurdinha sempre deixam o que eu vou comer já aberto ou servido!

Em dúvida, Miguel começa a tatear a caixa e encontra uma tampa. Resolve abrir e vupt... o líquido se esparrama pela mesa, pingando no chão.

- Que estranho... isto aqui não tem cheiro de leite. Parece suco de uva! Tá bem então, vou beber suco em lugar de leite. Mas eu queria mesmo era leite com chocolate. E se eu colocar este achocolatado no suco... Vou tentar!

Quando Miguel vai abrir a lata, ela cai da sua mão e se abre, espalhando-se também pelo chão e ficando aquele café todo misturado no suco, na farinha, no sal, na maisena, no açúcar e nos ovos formando uma pasta no meio do chão da cozinha que se prolonga para os lados, para a frente e para trás, sinalizando o trajeto feito e refeito.

Nisto, Solange, sua mãe, entra esbaforida no apartamento e procura pelo filho, encontrando-o na cozinha. Ela para na porta, olhando para aquela calamidade.

- O que aconteceu por aqui, meu Deus?! Exclamou Solange.

- Eu apenas queria fazer um leite com chocolate e açúcar... no meio do caminho algumas coisas aconteceram, disse Miguel um pouco decepcionado.

A mãe deixa de olhar para aquela sujeira toda e começa a chorar, porque no meio disto tudo enxergou um filho precisando de independência e autonomia.

- Meu filho, o que eu não fiz por você! Vem, daqui para a frente vamos preparar juntos o seu lanche e juntos vamos aprender como encontrar e reconhecer os alimentos. Assim, você poderá preparar um lanchinho gostoso quando eu não estiver em casa.

- Ebaaaa! Legal, mamãe!!, vibrou Miguel de alegria.



   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, 8 de setembro de 2009.

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]


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