CÃO COM VIDA DE CÃO

   escrito por Sonia B. Hoffmann

Deitada, ouvindo a natureza, me diverti com os pássaros brincando livres na figueira aqui de casa, alimentando-se com seus frutos. Alguns minutos passaram-se e sumiram, provavelmente assustados com o coro histérico dos cachorros confinados nos quintais dos vizinhos. Imediatamente, surgiu um pensamento: hoje, os cachorros estão muito diferentes daqueles de dez anos atrás. Agora, eles latem por tudo e latem por nada; choram, uivam e tremem amedrontados diante do barulho intenso e do silêncio do abandono de seus "donos" porque saem em férias, vão passear e quem sabe até ficar alguns diazinhos no sítio, na casa de um parente ou amigo e sabe-se lá dos programas que aparecem. E os pobres cães ficam ali: ouvindo ruídos em excesso, músicas altíssimas, buzinas, marteladas, foguetes ou fogos de artifício, ordens como "cala boca", "fica quieto", "vai dormir"... ora, dormir? ficar quieto? Que vida de cão! O que podem fazer afinal de contas? Ter síndrome do pânico, porque seu dono, na maioria das vezes, sai com ele rapidinho para fazer suas necessidades fisiológicas quando habitam inconvenientemente apartamentos? Nada de lazer. Ficar quieto, vendo todos os dias a mesma paisagem, quando isolados em pátios? Se ainda tiverem sorte, há outro ou outros cachorros lhe fazendo companhia naquela caninopenitenciária, até que um belo dia enjoam de se enxergarem todos os dias e todas as noites e a briga começa... e a neurastenia também.

Embora eu não seja veterinária e nem tenha grandes conhecimentos dos problemas e crises caninas, fico pensando se o ser humano é tão presunçoso assim que não contente de adoecer a si mesmo, adoece igualmente os animais e, se duvidar, as plantas. Há quem ligue o rádio ou a televisão para o enfermo cão não sentir tanto a falta de companhia, de alguém que veja seu rabo balançando e de pelo menos uma pessoa que passe a mão em sua cabeça.

Então, uma pergunta começa a saltar em meu cérebro: por que o ser humano insiste em ter um cachorro como propriedade? Sim, propriedade porque, poucas vezes, ouço alguém falar com eles afetivamente e sem humanizá-los. Já escutei tantos motivos para a sobrevivência psíquica de um cachorro em uma casa ou apartamento. A campeã é assustar os ladrões... mas colocam junto uma cerca elétrica: isto que é confiança! Depois, vem aquela ótima: para que o mau-olhado pegue primeiro neles... Quanta fraternidade, hein? E quando a doença vem com mais vigor e é dito: porque não tenho filhos e moro só. Pior ainda é quando a gente percebe que o cachorro somente existe naquele "lar" porque seu dono pode mandar e desmandar sem ser questionado por ele. Um dia destes, ouvi que a pessoa tem o cachorro para ter alguém a quem contar seus problemas com privacidade. Ou seja, na maioria das vezes, as pessoas não querem exatamente um cachorro, mas um alarme, um amuleto, um filho, um cuidador, um saco-de-pancadas, um psicólogo. Será que não é possível ter um cachorro apenas e porque gosta-se de animais?

Sabem de uma coisa: eu não tenho cachorro porque gosto de animais. Como não tenho habilidade e visão para manter para ele e para mim um ambiente higienizado, não posso perceber as alterações visuais que podem sinalizar algum problema de saúde, não quero deixá-lo solitário durante horas e não possuo condições financeiras para pagar sua hospedagem em algum outro local enquanto viajo, fiz a opção por não tê-lo. O que posso fazer é contribuir para alguma instituição de proteção aos animais e orar pelos cães, para que possam sobreviver a seus donos e não caírem na armadilha de terem pseudo-lares.


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