MINGAUS, GOROROBAS E GRUDES

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, fevereiro de 2011.

Parti para o laboratório culinário com a mesma bravura apresentada por Dom Quixote pronto a enfrentar os moinhos de vento. Tigelas e formas tornaram-se tubos de ensaio; farinhas, ovos, leite, grãos e tantos outros ingredientes passaram à categoria de substâncias químicas a serem transformadas pela ação mecânica da força, do calor e da pressão. Pós, ervas e temperos mesclaram-se ao cozimento, ao assado e ao fervido e logo deram outro sabor e aroma, despertando a gula e a solitária mascote existente no mais íntimo da intimidade de cada um.

Quem teria sido o primeiro cientista a desvendar os mistérios da mistura e do cozimento, dentro de medidas e quantidades acertadas? Quem terá feito o primeiro bolo, a primeira feijoada, o primeiro angu, a primeira bacalhoada, ultrapassando as náuseas do erro e a tristeza do desconsolo de ver muitas caras tortas, diversos narizes torcidos e vários risos de escárnio. Sim, porque até chegar ao êxito, provavelmente diversos mingaus, gororobas e grudes devem ter passado e repassado por dias a fio pelos pratos, mesas e finalmente pelo lixo. Será que as sopas surgiram a partir de tentativas frustradas e permaneceram no estágio da decepção de um suflê desandado... E o que dizer do saboroso doce de laranja da terra; do quindim, da geleia de uva, do doce de chuchu com creme de baunilha... Ah, este foi feito somente pela minha mãe porque, até agora, não ouvi mais alguém que tivesse comido este manjar.

Quem teria sido a primeira cobaia capaz de persistir no seu papel e contribuir para o progresso da humanidade? Aqui em casa, é meu marido! Nobre pessoa, crente contumaz nas minhas pretensas habilidades e dotes culinários, incentivador irremediável de possibilidades que só ele percebe em mim. Antes dele, houve um dia em minha vida que a mistureba foi tão horrorosa que nem mesmo os cachorros a quiseram comer. Chegavam perto, cheiravam e davam meia-volta até que a volta se tornou inteira e nunca mais me visitaram. Uma vez, fiz uns bolinhos tão duros, mas tão duros, que passaram a ser conhecidos como armamento de guerra e o pomposo nome de Bolinhos Flinstones - qualquer semelhança com a Idade da Pedra não é uma descuidada coincidência. A recordação de uma bela tarde do século passado em que desbravei os meandros da cozinha para fazer pães de queijo me deixa emocionada. Munida com a receita, devidamente alterada por minha vontade e conhecimento, organizei os ingredientes, bati no liquidificador, untei as forminhas e levei tudo ao forno previamente aquecido. Que maravilha, tudo para dar certo! Toda prosa, cuidadosamente como se tivesse ao colo um bebê, transladei-os para a mesa. Logo os elogios surgiram e beatificamente ouvi de um amigo que ele desconhecia a minha habilidade em produzir chicletes de queijo. Pensei em argumentar sobre a necessidade de desenvolvermos a borracha a partir de outras fontes, mas percebi o quanto minha genialidade não seria compreendida. E a vez em que adicionei ketchup em lugar de leite condensado à receita do sorvete? Digam que existe rotina em minha cozinha e eu lhes provarei o engano.

Se fulano de tal tivesse desanimado com a primeira maçaroca resultante do seu árduo trabalho criativo, certamente não teria surgido o pão que nem sempre é nosso a cada dia pelo preço que anda. Se o caríssimo senhor beltrano de qualquer coisa não tivesse sido observador e esperto, não teria relacionado o copo de suco com uma colher esquecido ao relento de uma noite fria com a possibilidade da invenção, a partir disto, do picolé. Se a madame cicrana de tal e cousa houvesse parado para chorar eternamente por suas unhas quebradas, não haveria persistido e hoje talvez não tivéssemos em nossa mesa o pudim. Digo que foi uma madame a dar a luz ao pudim porque ele tem cara de mãe, jeito de mãe e cheiro de mãe inglesa, alemã, australiana ou francesa.

Os erros são necessários, gente! Ou vocês acham que o Lord Sandwich colocava carnes, presuntos, verduras, queijos, legumes, ovos e tantas outras invencionices entre duas fatias de pão, fazendo surgir do nada o nosso conhecido sanduíche, bauru e o famoso Xis, se a sua empregada não fosse naquela época uma esmerada negação no forno, fogão e geladeira de sua cozinha?

Já houve quem tivesse mexido no meu queijo, no meu salame e agora por que eu não posso mexer na minha panela, empunhando solenemente a colher de pau e vestida a caráter como toda cozinheira que se preze? Sujando e amontoando utensílios; esparramando descuidadamente ingredientes no espaço aéreo e terreno do caos de meu laboratório.

Estas dificuldades, porém, não me tiram o sono e nem o rebolado. Faço parte de uma grande legião de aprendizes de feiticeiro; ocupo um lugar na vasta maioria de componentes do movimento "cem tentativas, sem comida". Um dia, chego lá! Este é meu sonho de consumo: fazer algo tão bom, tão bom, mas tão bom que se tornará inesquecível por sua gostosura. Daí, feliz com a vitória sobre meus limites, me sentarei e começarei a pensar em fazer crochê... aliás, quem sabe de alguém que ensine a fazer crochê? Não tenham pressa em responder, pois ainda vai demorar um tempo.


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