O SORRISO DO CACHORRO

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, março de 2011.

Criança alegre e curiosa, um dia passeava feliz pelos quarteirões próximos da minha casa quando encontrei um cachorro deitado na calçada, em frente a uma loja. Parei para o observar, pois logo me chamou a atenção a sua expressão fisionômica, ou será cachorrômica? Ele tinha a cara de um amigo meu. Não riam, é verdade! Corri e contei para o Fernando, era este o nome dele. Isto me custou alguns dias de afastamento em nossas brincadeiras. Com o tempo, ele absorveu a ideia e entendeu que eu não o estava chamando de cachorro, pedindo depois para conhecer o tal canino. Nunca mais o encontrei... nem o cachorro e, mais tarde, nem o Fernando! A vida tem tantos rumos e, às vezes, nos perdemos de pessoas queridas e marcantes em alguma etapa da jornada, mas isto não significa que fiquem ancoradas no passado e sejam deletadas de nossas recordações. Com frequência, algumas delas são hoje mais presentes em sua falta do que quando eram presentes em nossa infância e juventude. Um típico exemplo disto é a nossa relação com os pais.

No começo, os idolatramos, passamos pelo complexo de Édipo ou Electra, despersonalizamos suas atitudes porque, em nossa imaginação, são fantásticos heróis e paladinos da única verdade que impera em nosso mundo - um mundo que é somente nosso e deles. Ninguém sabe mais de nós do que eles. Aos poucos, porém, este encanto sofre rachaduras e, num belo dia, se esfacela. Compreendemos, então, que sentem frio, medo e fome; têm incertezas e são falíveis; soltam pum, arrotam e dizem M maiúsculo e sonoro como qualquer outro ser mortal. Vem um dia e outro e mais outro e, quando percebemos, estamos plenamente ajustados ou desajustados com esta verdade. Aos poucos, entendemos que nós e os outros também raciocinamos; temos ideias ora brilhantes, ora luminosas, ora em blackaout.; cometemos acertos e possuímos sentimentos e pensamentos indizíveis. Porém, mais tarde, e talvez tarde demais, duramente constatamos como grandiosas lições de filosofia do cotidiano e como ricos conselhos para nossa vida aquilo que havíamos rotulado como baboseiras de pai, tagarelices de mãe.

Mas a proposta desta conversa, a ser recriada por vocês, era falar sobre o sorriso do cachorro. Duvidam que ele sorria? Roberto Carlos não duvida: o cachorro dele até mesmo sorriu pra ele, latindo! Alguns expressam sua alegria sacudindo o rabo que tem ou não tem, requebrando aquele toquinho pra lá e pra cá, pulando, saltando e, se deixarmos, um dia destes ainda plantam bananeira. E quando pressentem a chegada do dono? Armam todo um ritual, se desdobram em gentilezas, mesuras e saudações caninas que chegam as raias do escândalo. Mas ninguém disse pra eles ou escreveu um manual em cachorrês que explicasse sobre a lei do silêncio nos prédios e a da perturbação do sossego alheio.

Porém, nem só de sorrisos e alegrias vive o cão. Há quem não acredite, todavia, os cachorros têm e manifestam muitos sentimentos. Conheci uma cadela que teve gravidez psicológica: seu filhote era um morango de borracha e o levava para todos os cantos da casa, não deixando qualquer pessoa tocar nele. No lado direito da minha casa, tem um cachorro que sofre da crise de solidão. Ele uiva e late durante o dia quando a família não está em casa. Quando isto acontece durante a noite, ele uiva e chora baixinho, como pedindo proteção e companhia. Se a intenção do dono é ter um guardião, então engana-se geometricamente porque o cão fica tão fragilizado e sensível que é capaz de "agradecer" a presença do ladrão e amolecer com seu afago. No lado esquerdo, a coisa é diferente: quando a família sai, os dez cachorros ficam de bate-papo para preencherem seu tempo. Aqueles que ficam presos no pátio atrás da casa iniciam o diálogo canino e, conforme sua mensagem, recebem latidos nervosos, provocadores, educados ou intermináveis como resposta daqueles que ficam no andar superior da casa, no jardim e dentro da garagem. Isto tudo vai se alternando e alternando também o humor dos vizinhos!

Quando criança, tive uma experiência muito emocionante, a qual tenho bem presente em minhas lembranças. Conheci um senhor e um cachorro que, por anos a fio, andaram sempre juntos, envelhecendo juntos tanto nos corpos, quanto nas sombras. Um dia, este senhor morreu. O cão, silenciosamente, acompanhou o velório e, no momento do enterro propriamente dito, ele adiantou-se, ficou em pé com as duas patas dianteiras sobre o caixão e uivou e uivou tristemente, como pranteando seu amigo. Duas semanas depois, também morreu.

Muitas histórias de cães poderiam ser aqui contadas, mas um texto tem de ter um ponto final para que outras histórias possam surgir. No entanto, imagino que, provavelmente, algumas pessoas estejam ainda esperando para lerem sobre a ligação do segundo parágrafo deste texto com os sentimentos caninos. Muito simples: os cães sempre acreditam em seus donos e nunca os abandonam espontaneamente; nós, com o tempo, passamos a duvidar de nossos pais e muitos têm a capacidade e a falta de sensibilidade para abandoná-los.


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