O BARALHO DO MENDIGO

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   E-mail soniab27@terra.com.br
   Porto Alegre, março de 2011.

Ele gostava de sentar em um caixote de madeira que ficava à porta do boteco, perto da faculdade. A qualquer hora que chegássemos lá, lá estava o Quim e seu baralho. Dizia entender tudo de jogos de cartas e tinha a maior intimidade com os reis, rainhas, valetes e ases. Seus dedos ágeis faziam surgir e desaparecer uma carta com uma rapidez impressionante. E faziam mesmo... com a mesma rapidez que colocava no bolso o dinheirinho dado pela plateia entusiasmada e pela camaradagem estabelecida com alguns estudantes e professores.

Um dia, dois rapazes novos na faculdade, no auge da excitação da novidade e do desejo em deixar bem claro para que vieram, desafiaram Quim para um jogo de pôquer. O mendigo, muito calmo, olhou para eles e lentamente, com seriedade em sua voz, perguntou se eles tinham consciência do que estavam propondo. A resposta foi um muxoxo, a reação de desdém e a alegação de que ele estava com medo de perder. Para eles, tudo não passava de bravatas de um mendigo ignorante. Quim continuava a observá-los e, aos poucos, seu olhar se entristeceu. Perguntou, então, se os jovens sabiam que estavam roubando? Eles ficaram atônitos, nada compreendendo. Recobrando o ímpeto, um deles chamou Quim de covarde e o ameaçou com uma ação por calúnia e difamação.

O mendigo não se intimidou, afirmando que eles estavam roubando. Muitos se aproximaram e alguém indagou sobre o quê estavam roubando, pois o jogo nem havia começado. Quim balançou a cabeça e, tranquilamente, declarou que eles roubavam a alegria e a espontaneidade do momento, os sorrisos e o relaxamento dos alunos e dos professores que procuravam aquele bar para se desestressarem e descansarem a mente. Para ele, um jogo de pôquer iria causar tensão, aposta e competição. Quando apenas brincava com o baralho, fazendo seus truques às vezes elaborados, às vezes rudimentares, ele via não somente lábios sorrindo, mas olhos e fisionomias adultas refletindo as lembranças mágicas da infância.

Os jovens saíram, dando de ombros e considerando que a mendicância havia alterado o pensamento e o juízo do mendigo, pobre coitado, vítima das intempéries, da miséria, da sociedade, da cultura e de tantos outros fatores e variáveis contidas no discurso teórico e acadêmico dos desentendidos da construção humana que consideram abarcar todo o conhecimento humano no primeiro ano do ensino superior. Quem permaneceu no bar, dividiu-se entre o "deixa pra lá" e "que conversa do Quim é esta? Roubo do prazer, da alegria, do relaxamento...".

Fiquei refletindo sobre este acontecimento e entendi que as palavras do mendigo, além de sábias, foram de imensa generosidade. Quem leu o livro O caçador de pipas encontra um diálogo entre Baba Jan e seu filho no qual o pai afirma que existe apenas um pecado: roubar. Qualquer outro é simples mente uma variação do roubo. Ou seja, quando matamos um homem, estamos roubando uma vida, estamos roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos um pai. Quando mentimos, estamos roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceamos, estamos roubando o direito à justiça.

Quando desacreditamos na capacidade de superação e discernimento de alguém e o consideramos inviável, roubamos deste alguém a sua liberdade, o seu direito a ser e pensar diferentemente de nós, roubamos dele o seu prazer de viver, de agir, de marcar com os seus passos o caminho da vida, de construir seu grande quebra-cabeça e de enfrentar os desafios.

Na ânsia de demarcarmos nossa posição, nosso poder, nossa condição social, intelectual e financeira roubamos da vida, muitas vezes, a naturalidade do ser e do estar no mundo; sonegamos dela a alegria do encontro desinteressado, usurpamos de nós e dos outros a satisfação de viver sem sustos, preocupações e preconceitos. Para impor nossa vontade, em muitas ocasiões, blefamos e passamos por cima de sentimentos. Nos agarramos de unhas e dentes nas cartas do baralho da vida, dispondo absurdamente nosso jogo com ou sem regras, mas com o máximo cuidado de não deixarmos à mostra as cartas marcadas pelo nascimento e pela morte, pois esta é a prova da nossa finitude.

Será este o jogo que fazemos com a vida? Façam suas apostas... ou não!


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