SACOS NAS COSTAS E AMOR NOS CORAÇÕES

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   E-mail soniab27@terra.com.br
   Porto Alegre, março de 2011.

Uma época, trabalhei na neuropediatria da antiga febem. Os bebês e as crianças até os quatro anos de idade eram levados para lá ou por ação judicial, por abandono, maus tratos ou porque os pais entregavam espontaneamente seus filhos em função de não terem condições de sustentá-los ou dar a eles a dignidade do abrigo. Muitas vezes, chegavam lá não somente com danos físicos e emocionais, mas o corpo tomado por sarampo, assaduras, alergias, piolhos e diversas outras doenças resultantes de péssima higiene, carência de alimentação e falta de cuidados básicos.


Uma vez por semana, mais especificamente às quartas-feiras, acontecia o dia da visitação no qual pais e familiares, se tivessem vontade e condição, ainda poderiam encontrar estas crianças para manter o vínculo familiar. Naquele dia, observava que algumas crianças ficavam tensas, em dúvida e com medo de que ninguém fosse até lá; outras, mantinham-se serenas e confiantes e outras ficavam completamente indiferentes. Era ao mesmo tempo preocupante e triste, mas os fatos se desenrolavam e assim desenrolava-se aquela realidade. No entanto, semanalmente acontecia um episódio bastante digno de registro. Um casal de andarilhos e moradores de rua chegava, retirava os sacos repletos de badulaques das costas, verdadeiras casas ambulantes. Com o olhar ansioso os pais buscavam seu filho entre as crianças que brincavam no jardim. Ao se encontrarem, eles se abraçavam e iam para um banco conversar. Poucas vezes em minha vida presenciei encontros com tamanha amorosidade e delicadeza. Davam conselhos ao menino, perguntavam sobre suas brincadeiras e sua saúde, interessavam-se pelos seus dias e noites.

No momento da partida, abraçavam-se novamente e entregavam com muito carinho ao seu filho um bombom ou outro chocolate, conseguido sabe-se lá como, e prometiam encontrar-se novamente na próxima semana; que ele ficasse bem e espera-se por eles. Eu também ficava aguardando a próxima semana, pois sentia tanta nobreza e tanta responsabilidade naquele comportamento que até me envergonhava da frieza com que muitos pais abastados, de classe média alta ou baixa, tratam seus filhos. Pais com estudo, com emprego, com recursos estruturais e funcionais para manter uma família, mas com uma grande precariedade de sentimentos amorosos investidos nesta relação ao mesmo tempo complexa e simples, de puro desdobramento do respeito pelo outro.

Não sei exatamente onde está o ponto de entrave da fluidez e naturalidade da interação humana, no entanto, é crescente a quantidade de pais e filhos desencontrados no seu processo conjunto de desenvolvimento e amadurecimento. Diariamente, convive-se com exigências, inibições, conflitos geracionais, negligências, abusos emocionais e o próprio bullying familiar. Sim, há pais que intimidam, agridem e transgridem moralmente seus filhos; marcam seu afeto com feridas e cicatrizes que irão carregar por muito tempo, enquanto não conseguem desfazer o nó do medo, da mágoa e da raiva.

São pais que não aceitam a autonomia intelectual dos filhos, que percebem suas diferenças como defeitos, que não os aceitam a menos que se submetam à condição de fantoches, que se provalecem e se prevalecem do seu papel de pais para extravasar neles os seus recalques, as suas inadequações, os seus problemas. Contudo, inexplicavelmente,consideram-se bons pais porque não batem ou castigam fisicamente seus filhos. Mas o que pensar e dizer dos enormes acidentes e catástrofes emocionais que causam e, possivelmente, serão manifestados por estas crianças mais lá adiante, quando forem adolescentes, adultos e idosos?

Quantos e quantos adultos ainda hoje sentem ecoar entre as dobras dos seus sentimentos e pensamentos falas dos pais, ameaçando "enquanto eu sustentar a casa, sou eu quem manda", "quem desejar morar aqui tem de fazer o que e como eu quero", "não interessa o que vocês gostam, compro o que acho importante".O pior de tudo é o fato de muitas pessoas repetirem o comportamento que abominavam em seus pais, não porque tenham repensado e percebido que em determinadas circunstâncias tinham razão, mas simplesmente porque sofrem da síndrome de Gabriela: "eu nasci assim, eu vivi assim e vou ser sempre assim".


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