NOVAS AMIZADES, NOVOS APRENDIZADOS
Carla aguarda para a travessia da rua. O trânsito está intenso e ela ouve apenas pessoas indo e vindo, apressadas. Decide, então, solicitar auxílio ao ouvir passos mais lentos se aproximando, os quais considerou serem de mulher porque soavam como de sapatos de saltos altos.

"Mas, em caso de dúvida, mantenha uma fala neutra", lembrou-se ela de um dos sábios conselhos de Rosália, sua professora de Orientação e Mobilidade.

- Por favor, pode me auxiliar na travessia desta rua?

- É claro, respondeu uma jovem, enquanto pegava na mão de Carla. Só vamos esperar a sinaleira abrir para nós.

- Obrigada, mas para me sentir mais segura é possível eu pegar no seu braço?

E assim falando, Carla já estava realizando a manobra de pegar suavemente o punho da jovem com a mão que segurava a bengala - e que agora estava apenas com ela presa pela alça em seu próprio punho, enquanto sua outra mão realizava a pega no braço da jovem, na altura do cotovelo.

"Santa Rosália, que sempre insistia: coloca a alça da bengala no punho quando for atravessar a rua, menina; assim não há perigo dela cair no meio da travessia", lembrou-se novamente ela de um dos conselhos da professora.

As duas jovens atravessaram a larga avenida e, somente na calçada do outro lado, Carla soltou o braço da sua colaboradora e agradeceu.

- Daqui em diante, sabe ir sozinha?

Carla deu um breve sorrisinho para si mesma, pois aquela pergunta ouvia tantas vezes quantas solicitasse um auxílio necessário.

- Sim, obrigada. Daqui em diante, sei o caminho até o shopping.

- Ah, eu também vou até lá fazer umas comprinhas. Podemos ir juntas!

- Legal, vou gostar de uma companhia! Posso, então, pegar no seu braço novamente?

- Tudo bem, mas você me orienta se eu estiver fazendo alguma coisa errada... Sabe como é... eu não sei muito bem estas coisas de ajudar uma pessoa... pessoa.. bem, alguém que não enxerga.

E lá se foram as duas para o shopping.

- Como é o seu nome?

- Carla, e o seu?

- Mônica. Eu tenho 16 anos, e você?

- Ah, eu tenho um ano a menos. Tenho 15 anos.

- E não tem medo de sair assim pela rua sozinha, só com esta bengalinha... Como é que eu chamo? Digo bengala mesmo?

- Sim, o nome correto é bengala. Com ela, me sinto independente e mais segura. Fiz um curso pra usá-la. Ele se chama curso de Orientação e MOBILIDADE, também conhecido como OM.

- Tipo uma autoescola para dirigir uma bengala? - brincou Mônica.

- Mais ou menos assim, mas não levo multas e nem pontos na carteira, respondeu Carla, sorridente.

- Nem a co-piloto, disse Mônica, rindo.

- Ei, Carla, logo ali adiante já começam os degraus da entrada do shopping. O que eu faço?

- Hummm, acho que seria uma boa ideia a gente subir, não é?

- Bem-humoradinha, hein, Carlinha!? Gosto de pessoas assim! Eu tinha uma outra imagem das pessoas cegas.

- Que imagem?

- Ah, eu pensava que toda pessoa cega fosse meio triste, de mal com a vida, pelo fato de não enxergar... Sabe, uma vez fui ajudar um rapaz cego, que além de estar com uma aparência tristonha, ainda recusou minha ajuda com um jeito bem grosseiro.

- Mas, Mônica, a gente não pode generalizar. As pessoas cegas são diferentes entre si, assim como as pessoas que enxergam, que são surdas, que usam cadeiras de rodas. Cada um tem a sua personalidade, o seu jeito de ser. De repente, naquele dia, aquele rapaz estava de mal com a vida por algum outro motivo e não porque ele é cego. Às vezes as pessoas confundem e acham que a cegueira é o único motivo pra nós ficarmos tristes, preocupados ou zangados.

- Não tinha pensado desse ponto de vista... tem razão. Como eu sou burrinha, hein!

- Não, não diga isto. Você apenas, como muita gente, ainda não recebeu informações adequadas sobre como se relacionar com as pessoas com deficiência.

- Bom, vamos subir?

- Vamos, sim, respondeu Carla.

- Um, dois, três, quatro...

- O que está fazendo, Mônica?

- Contando os degraus, Carla, pra você ficar sabendo quantos têm. Só faltam mais 4.

- Ora, não é preciso isso. O movimento do seu corpo já me informa quando termina a subida da escada, assim como também me informa quando termina a descida e tantas outras coisas que acontecem pelo caminho. Viu, chegamos ao final e nem foi preciso me dizer que a escada havia acabado, seu movimento foi mais rápido do que a palavra!

- Puxa, quanta coisa estou aprendendo... E a gente nem para pra pensar como existem outras maneiras de conseguir fazer as coisas. As pessoas que enxergam acabam dando muita importância pra visão e se esquecem de que os outros sentidos também são importantes. E agora, em que loja você vai?

- Vou na Reflexus, no segundo andar.

- Ah, aquela loja de roupas femininas?

- Sim, na semana passada deixei uma saia aqui pra fazer a barra e hoje vim buscar. Vou aproveitar e comprar uma blusinha que vi da outra vez.

- Você viu?... Como assim?... Como é que escolhe a roupa, a cor, o modelo?...

- Calma, uma pergunta por vez! Escuta, aqui já está a escada rolante.

- Sim, estamos bem em frente à escada-rolante. Como você adivinhou?... E como posso te auxiliar neste tipo de escada?...

- Eu não adivinhei, ouvi o barulho característico que ela faz; e basta Colocar minha mão no corrimão que o resto eu mesma faço.

- Tá certo, entendi.

Em frente à loja, as duas jovens se despedem.

- Gostei muito de você, Carlinha! Vamos continuar esta conversa em outro dia?

- Vamos, sim! E como pode ser isto, Mônica?

- Bem, meu MSN é... Ah, desculpe, estou tão acostumada com essas coisas de internet que nem lembrei que...

- Ah, não tem problema, Eu também adoro um computador! Quer anotar o meu MSN?

- O quê? Cegos também usam computador?

- Esta e todas as outras perguntas sobre as pessoas cegas lhe responderei pelo MSN, ou você prefere receber pelo Skype, ou por e-mail? indagou Carla, muito sorridente.

- Seremos boas amigas pelo jeito, Carlinha!!!


Texto de Sonia B. Hoffmann e Eduardo Paes
Rio de Janeiro, janeiro de 2007

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