HISTÓRIA DO USO E DAS TÉCNICAS DE MANEJO DA BENGALA
Profª. Drª. Sonia B. Hoffmann
Porto Alegre, RS - 15 de maio de 2009


Relatos, pinturas e escritos vêm registrando historicamente o uso de instrumentos auxiliares pelos indivíduos com deficiência visual na realização dos seus deslocamentos, uma vez que cajados, bastões e bengalas foram empregados, em diversas épocas, por muitos deles com as finalidades de proteção, orientação e exploração do espaço.

A leitura atenta dos desenhos encontrados em cavernas, da literatura bíblica e da obra de Diderot (1979) dão conta de que evoluções na forma e no uso deste instrumento aconteceram nos vários contextos socioculturais. O cajado de Isaac, por exemplo, evoluiu para uma bengala, a qual teve suas funções ampliadas de instrumento de orientação e proteção para exploração, busca e reconhecimento de objetos e do ambiente.

Inicialmente, o manuseio e o manejo da bengala aconteceram muito mais pela intuição, bom senso e curiosidade do indivíduo com deficiência visual, mas que deram condições a muitos cegos de romperem com uma passividade e acomodação socialmente impostas a eles em situações até mesmo diárias. Com o tempo, entretanto, surgiram técnicas e estratégias específicas que facilitaram, oportunizaram maior segurança e ampliaram as possibilidades de deslocamentos independentes no ambiente.

Sauerberger (1996) relata que estas técnicas foram impulsionadas a partir da II Guerra Mundial, quando muitos soldados americanos, os quais tinham ficado cegos em batalhas, foram enviados para hospitais em Valley Forge e Dibble com o objetivo de realizarem posteriormente o programa de reabilitação para cegos em Avon, Connecticut. Os instrutores deste programa não ensinavam técnicas ou permitiam o uso da bengala, pois estas eram proibidas. Contudo, durante as orientações, encorajavam estes pacientes a estarem atentos e utilizarem estratégias como ecolocação*, mudanças na superfície do chão, layouts espaciais e marcas no terreno de prédios e campos.

Para o provimento de serviços aos soldados, enquanto eles se recuperavam no Valley Forge e antes que eles fossem para Avon, os militares procuraram por pessoas que tivessem experiência com cegueira. Então, como informa Sauerberger (1996), eles recrutaram Warren Bledsoe e Richard Hoover porque ambos haviam trabalhado na Escola de Cegos em Maryland (Maryland School for the Blind - MSB). Bledsoe, antes de ingressar no exército, havia sido ensaísta dramático e professor de inglês, enquanto Richard Hoover foi treinador atlético e ensinou matemática naquela escola, tornando-se, posteriormente, oftalmologista.

Um dia, quando o conselho em Valley Forge discutia sobre o que fazer com um grupo recém-chegado de soldados cegos, Hoover considerou que a primeira coisa que eles deveriam saber era como circular. Após este episódio, Hoover e Bledsoe discutiram sobre a funcionalidade do uso somente da ecolocação para obstáculos na caminhada, como acontecia em Avon. Deram-se conta, então, de que esta atividade não era suficiente e que uma bengala era necessária. Hoover, então, começou a desenvolver uma técnica de bengala. Para isto, vendou-se a fim de tentar várias técnicas e pediu a muitos outros para experimentarem. Depois de muitas tentativas e erros, ele se deu conta da necessidade de uma bengala leve movida em arco à frente da pessoa, com a bengala tocando no lado oposto do pé que avança. Esta técnica da bengala de Hoover, também chamada técnica de toque da bengala, iria revolucionar a mobilidade independente da pessoa cega (Sauerberger, 1996).

Bledsoe e outros instrutores aprenderam a técnica do toque de bengala e, juntamente com Hoover, as ensinaram para os soldados cegos que estavam se recuperando no Hospital de Valley Forge. Russ Williams, um dos soldados que ficou cego depois da invasão normanda, foi o primeiro deles a aprender esta técnica. Quando foi para Avon, entretanto, foi impedido de usar a bengala e aprendeu somente técnicas de orientação, incluindo o uso do som, sombras e ecolocação.

Depois de ter incorporado tudo o que havia aprendido em cada um dos programas, Russ Williams começou a desenvolver técnicas e desafiar suas habilidades para alcançar e ampliar sua independência, retornando para Valley Forge onde ensinou braille e outras habilidades e aconselhou outros soldados que tinham experienciado o recente traumatismo da cegueira.

No entanto, a técnica de toque de bengala e o treinamento que a acompanha não eram geralmente aceitos pelas agências civis ou pelas próprias autoridades militares. Por este motivo, Bledsoe trabalhou diligentemente para advogar esta causa, tornando-se habilidoso em estratégias políticas e administrativas para manter o programa.

Russ Williams foi escolhido para chefe do novo programa de reabilitação no Hines Hospital. Bledsoe e Williams tiveram que recrutar e treinar novos instrutores, como Eddie Mees, Alford "Dee" Corbett, Stanley Suterko, Bud Thuis e Larry Blaha.

Bledsoe ensinou aos novos instrutores a técnica de bengala, desenvolvida por Hoover; Williams ensinou a eles as técnicas que havia aprendido em Valley Forge, em Avon, e aquelas que ele próprio havia desenvolvido para ampliar a independência e a segurança nos deslocamentos. Deste modo, o êxito no desenvolvimento das técnicas e programas de OM é atribuído, em grande parte, à determinação de Russ Williams na aprendizagem e no ensino dos conhecimentos de OM e, parcialmente, à sua grande expectativa e confiança na aprendizagem e aplicação destas técnicas pelos demais veteranos também cegos.

Sauerberger (1996) assinala que, quando os instrutores começaram a ensinar os veteranos cegos, as técnicas e estratégias de OM começaram a ser modificadas. Estas mudanças foram atribuídas ao fato de que as aulas e técnicas ficaram crescentemente mais sofisticadas, as expectativas se fortaleceram e os instrutores tornavam-se mais e mais sensíveis e criativos frente às necessidades dos veteranos cegos.

Com este resgate histórico, percebemos a fundamental importância e avanços obtidos na orientação e na mobilidade do indivíduo com deficiência visual a partir da organização de técnicas e estratégias elaboradas por Richard Hoover, William Bladsoe e Russ Williams: Hoover, contribuindo com a modificação ergonômica da bengala, a qual deixou de ser um instrumento de apoio para tornar-se um instrumento de orientação e exploração do ambiente pela técnica do toque; Bledsoe, participando ativamente como instrutor das técnicas de OM e articulador de estratégias políticas e burocráticas para a manutenção dos programas de reabilitação; Williams, acreditando nas possibilidades da pessoa cega, aprendendo, buscando novas técnicas de OM e as ensinando a outros indivíduos com deficiência visual, bem como formando novos instrutores de OM.

(*)Nota

Telford e Sawrey (1984) esclarecem que ecolocação, ou visão facial, é a habilidade desenvolvida pelo indivíduo cego de localizar-se e orientar-se auditivamente pela reverberação dos sons em obstáculos, formando ecos, a partir da emissão de estalos com a boca ou com os dedos, palmas, batidas com a própria bengala ou com os sons dos próprios passos.


Bibliografia:

- DIDEROT. Carta sobre os cegos para uso dos que vêem. In: DIDEROT. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1979.

- HOFFMANN, Sonia B. O outro social: um obstáculo a ser vencido pela criança cega congênita e a bengala branca - Estudo nas culturas brasileira e portuguesa. Porto, 2003. Tese apresentada às provas de Doutoramento em Ciências do Desporto. Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física. Universidade do Porto (Portugal).

- SAUERBeRGER, Dona. O&M living history: where did our O&M techniques come from? Metropolitan Washington O&M Association, May 1996. Disponível em: Acesso em: 24 mar. 2001.

- TELFORD, Charles W.; SAWREY, James M. O indivíduo excepcional. 5.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

- WELSH, Richard L.; BLASCH, Bruce B. Foundations of Orientation and Mobility. New York: American Foundation for the Blind, 1980.

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]


VOLTAR À PÁGINA PRINCIPAL