O ENSINO DAS ESTRATÉGIAS DA BENGALA NA PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO


       Sonia B. Hoffmann
       Porto Alegre, 31 de agosto de 2009.

O manejo da bengala pela pessoa cega ou com baixa visão é considerado, por muitos leigos no assunto, uma tarefa bastante simples, restringindo-se em levar a bengala a frente do corpo e tatear o chão em busca de algum obstáculo, degrau ou buraco. No entanto, observando-se tão-somente o aspecto motor, esta tarefa revela-se complexa, requisitando a aquisição e o desenvolvimento de habilidades motoras e sensoriais específicas e especializadas.

Esta aquisição de destrezas, porém, não implica a espera do momento motor ideal da pessoa ou sua obtenção de habilidades prévias de uma forma não significativa - a qual tomaria sua importância e significado quando realizada justamente com o uso da bengala. O surgimento e o desenvolvimento mecânico de habilidades motoras nem sempre garantem a funcionalidade de uma determinada ação. Além disto, há movimentos que, para deixarem de ser rudimentares, necessitam exatamente da interação do indivíduo com uma determinada tarefa e em um determinado ambiente. Assim, existirá sempre uma correlação entre indivíduo, tarefa e ambiente para o desenvolvimento motor do ser humano.

Neste sentido, percebe-se como grande valia o embasamento teórico associado a uma prática observacional e avaliativa para o planejamento, estruturação, execução e monitoramento de um programa de ensino das estratégias de orientação e da mobilidade de pessoas cegas ou com baixa visão no espaço próximo ou distante, contudo, significativo a ela.

Este artigo traz contribuições para a organização de um programa de Orientação e Mobilidade (OM) e busca, também, o desencadeamento do processo reflexivo sobre alguns enfoques motores a serem considerados para o progresso desta atividade - desde as questões individualizadas do aprendiz até a escolha do profissional que estará em cena neste processo educativo.

2 Aspectos desenvolvimentais a serem considerados no ensino de OM

As pessoas, ao longo do tempo, passam por mudanças e, necessariamente, também mantêm uma igualdade em certos aspectos do seu desenvolvimento. A mudança de comportamentos, posturas, habilidades e condutas é sistemática e adaptativa, de caráter qualitativo e/ou quantitativo, ocorrendo em muitas instâncias e facetas diferentes do eu. Para a facilitação do entendimento, há uma tendência de categorização desta relação mudança-similaridade através de uma abordagem na qual existe uma separação dos elementos de um processo globalizado. Surge, então,
o desenvolvimento físico ou motor, cognitivo e afetivo e o desenvolvimento psicossocial em cada período da vida. Contudo, essas abordagens não são nem isoladas e nem resultado de um somatório, mas estão entrelaçadas. Cada aspecto afeta os outros influenciando-os e repercutindo em diferentes pontos de crescimento e desenvolvimento do indivíduo.

Neste segmento, são enfatizadas a obtenção e o desenvolvimento de habilidades motoras, as quais, de forma alguma, acontecem sem a participação ativa e influenciadora dos demais aspectos desenvolvimentais humano.

O desenvolvimento motor ocupa-se de mudanças nos movimentos, ações e habilidades acontecidas ao longo da vida, desde a concepção até a morte do indivíduo. No seu estudo, o movimento é definido como uma mudança no tempo real, envolvendo energia, controle e produção de força. As ações são comportamentos dirigidos a uma determinada meta, são específicas e têm um propósito - no caso, o manejo e o uso da bengala. Por sua vez, as habilidades referem-se à capacidade do indivíduo na execução de uma tarefa de forma segura e estável, com grande probabilidade de sucesso devida aprendizagem da equilibração entre a estabilidade e a instabilidade passíveis de serem encontradas no deslocamento e da orientação do indivíduo em determinado ambiente..

Com isto posto, é essencial para o professor ou para o instrutor de OM conhecer o aprendiz, suas habilidades motoras já adquiridas e aquelas que devem ser desenvolvidas para o desempenho produtivo e efetivo da tarefa de manejo da bengala e da locomoção. Do mesmo modo, é fundamental que seja considerado o nível de motivação para o desempenho destas duas tarefas, pois, como assinalam Carroll (1968) e Hoffmann (1998), o grau de motivação para o deslocamento de uma pessoa cega deverá ser maior em proporção ao grau de dificuldade causado em sua locomoção com a bengala em virtude dos possíveis, sérios e vários riscos de acidentes, constrangimentos e entraves que ela tenha de enfrentar no seu percurso - os quais provavelmente acontecem com mais frequência com as pessoas cegas ou com baixa visão do que com aqueles que enxergam.

Assim, o conhecimento das necessidades e habilidades do aprendiz é de vital importância, reconhecendo-se que cada indivíduo possui um conjunto diferente de capacidades físicas, mentais, emocionais e sociais construídas ao longo da sua vida, como resultado das suas experiências, vivências e cultura. Este (re)conhecimento é importante para a estruturação de um planejamento eficiente ao aprendizado de habilidades específicas e a organização de sessões de treinamento. Considerações sobre a aquisição e o desenvolvimento de capacidades e habilidades do indivíduo devem, assim, fazer parte do conjunto de informações e questões a serem observadas pelo professor de OM. Neste sentido, torna-se prudente a reflexão sobre algumas diretrizes trazidas por Galahue e Ozmun (2005), as quais podem ser relacionadas ao aprendizado das estratégias para o manejo e uso da bengala:

O ritmo da aprendizagem acontece não somente a partir das capacidades e potencialidades individuais para a assimilação, construção e registro das informações, mas também envolve as influências socioambientais experimentadas pelo indivíduo no seu contexto micro e macrossist~êmico que atuam cotidianamente, constituindo os fundamentos psicoculturais e filosóficos da sua conduta e comportamento.

Todas as diferenças e similitudes encontradas no desenvolvimento humano revitalizam a singularidade e a peculiaridade que caracterizam cada indivíduo. A condição motora do aprendiz é, além das demais possibilidades desenvolvimentais, um aspecto relevante para sua organização como indivíduo e da sua organização dentro do projeto de vida.

Na perspectiva da teoria dos sistemas dinâmicos, difundida por Galahue e Ozmun (2005), o organismo humano é autoorganizado e composto de vários subsistemas, levando o indivíduo a alcançar o controle motor e a competência motora. A coordenação e o controle motor surgem como resultado final de vários sistemas que trabalham dinamicamente de maneira cooperativa. Os sistemas derivados da tarefa, do indivíduo e do meio ambiente operam separadamente e em conjunto para determinar o nível, a sequência e a extensão do desenvolvimento.

Os padrões preferidos de comportamento motor desenvolvem-se em reação a fatores peculiares do indivíduo, da tarefa e do ambiente, porém, para isto, é necessário que haja uma interação eficiente de sistemas somada a uma mínima quantidade de energia necessária. Para que o indivíduo conheça e compreenda esta interação eficiente dos sistemas, torna-se necessário que ele perceba-se motoramente e seja inicialmente orientado por um profissional da área do movimento a fim de interrelacionar seus sistemas biomecânicos e as demais condições desenvolvimentais que influenciam o seu desenrolar como ser humano e, a partir daí, saiba tirar proveito das capacidades e funcionalidades que tais sistemas isolados ou em conjunto lhe oferecem. Quanto à aplicação de uma mínima quantidade de energia necessária para a realização de uma determinada atividade motora, o indivíduo irá alcançar esta habilidade com maior aproveitamento se experimentar com frequência e repetição este movimento ou atividade motora. Ou seja, o indivíduo obtém o menor gasto de energia em sua marcha, por exemplo, a partir do momento que torna frequente esta atividade em sua vida. Outros exemplos podem ser apontados, bastando para tal pensar-se no treinamento consciente ou não que realizamos durante e para a prática de nossas tarefas diárias - resultando um movimento mais ágil, rápido e objetivo com menor gasto de energia e, portanto, menos cansaço ou estresse durante sua realização ao longo do tempo.

Associando estes conceitos à atividade de orientação e mobilidade, o aprendiz irá obter seu padrão preferido de deslocamento ao promover a interação eficiente entre os sistemas osteoarticulares de membro superiores, membros inferiores e tronco. Além disto, será necessário também que o indivíduo observe e atenda estes sistemas às necessidades e demandas trazidas pela tarefa de manejo e uso da bengala (sincronia dos movimentos corporais e aqueles realizados com esta ferramenta), as solicitações da tarefa e às condições ou demandas do ambiente (affordances). O menor gasto de energia para a realização tanto da atividade de manejo quanto a de uso da bengala durante o deslocamento será obtida pelo treinamento e pela repetição significativa da tarefa, pela motivação para realizá-la e pela maneira de administrar seus êxitos e constrangimentos.

A obtenção de padrões preferidos para a execução de uma determinada tarefa ou habilidade, os quais são modificáveis pela determinação das exigências do sistema, ), encontram na compensação pelos sub-sistemas, quando o organismo está alterado por algum motivo, um importante recurso uma vez que o ser humano pode utilizar-se da plasticidade cerebral e de sinergias motoras importantes para o processo do ajustamento e readequação estrutural e funcional para o desempenho de atividades significativas do indivíduo.

Deste modo, a aprendizagem adequada do manejo e do uso da bengala nos diversos aspectos do cotidiano de uma pessoa cega é relevante para sua constituição como sujeito motor e psicossocial, devendo-se ter o máximo de cuidado e responsabilidade no compartilhamento desta "ensinagem" porque passado, presente e futuro podem se imbricar de tal forma que repercussões deste processo de aprendizagem e uso da bengala usualmente se refletem em algum momento da vida do aprendiz.

Cuidados e observações simples como o encaixe adequado do quadril durante a marcha, o posicionamento e amplitude articular dos joelhos e uso do passo fisiológico, considerando-se a presença ou não de desvios (como pé varo, valgo, invertido ou evertido), assim como cuidados e observações com a condição da coluna vertebral,membros superiores e cabeça são tão importantes quanto uma análise mais complexa das possibilidades posturais (estrutural e funcional) do indivíduo durante o manuseio da bengala em um determinado trajeto. Para além destas referências, é aconselhável o cuidado com o comprimento da bengala e com o modo de transporte de objetos pelo aprendiz uma vez que estas também poderão ser causas para o estabelecimento de desvios posturais e dores osteoarticulares em decorrência de microtraumatismos, vícios posturais e compensações inadequadas.

Relativamente ao comprimento da bengala, torna-se importante que não haja negligência tanto pelo aprendiz, sua família e seu instrutor já que a mesma foi projetada ergonomicamente no sentido de garantir a liberdade da passada do seu usuário e de evitar o surgimento ou acentuação da curvatura patológica da região lombar, levando a uma lombalgia. Assim, é importante a atenção quanto à medida desta bengala, ou seja, que ela tenha o comprimento da distância entre o solo e o apêndice xifóide (ou base do osso esterno) do seu usuário.

No que se refere ao transporte de objetos, é importante que o aprendiz tenha o conhecimento de como fazê-lo, evitando gastos energéticos desnecessários e a instalação de hábitos motores inadequados e desvios articulares originados por compensações corporais nocivas à saúde física, e mesmo emocional, da pessoa cega ou com baixa visão. Exemplos destas possibilidades são a fadiga, o estresse, a escoliose, a cifose, a ptose abdominal e a irritabilidade.

Com isto, visualiza-se claramente a extrema importância do processo de orientação e mobilidade - especialmente o ensino das estratégias e manejo da bengala no deslocamento de pessoas cegas ou com baixa visão - ser conduzido e monitorado por um profissional da área do movimento humano (como o Professor de Educação Física, Fisioterapeuta, Terapeuta Ocupacional, por exemplo)). Embora a OM não seja meramente um processo biomecânico, utilizando um sistema de alavancas corporais, não é possível descaracterizá-lo e menosprezar a preponderância da motricidade humana nesta função, a qual prescinde da contribuição motora para a obtenção do sucesso na execução das tarefas de orientação e mobilidade do indivíduo no espaço com eficiência, segurança e eficácia. Os fundamentos e produtos da motricidade, nos seus aspectos intrínsecos e extrínsecos, são do saber e da competência destes profissionais e, portanto, são eles que com conhecimentos específicos podem atuar com maior efetividade no âmbito da OM. Infelizmente, no Brasil, são pontuais e escassos os locais onde estes profissionais atuam e são reconhecidos como fundamentais no desenvolvimento deste processo. Os próprios cursos de formação, tanto acadêmicos quanto de capacitação específica na área da deficiência visual, mantém-se resistentes à mudança ou desconhecem esta necessidade. É óbvio que somente o conhecimento da motricidade não é suficiente para a boa execução de um trabalho em OM, uma vez que outros saberes são importantes e influenciadores no desempenho e desenvolvimento desta atividade - quais sejam os conhecimentos específicos e peculiares das descontinuidades e modificações na recolha de informações pelos diferentes canais sensoriais, condições emocionais e alterações psicossociais, por exemplo, geradas pela deficiência visual em determinadas situações e contextos. Assim, é necessário que estes profissionais da área do movimento humano também adquiram a especificidade do conhecimento sobre a deficiência visual em seus diferentes âmbitos.

Esta crítica não é realizada no intuito de desmerecimento das funções e papéis até então desincumbidos pelos professores de outras áreas do conhecimento - como professores de geografia, história, português, etc... -, mas é feita na tentativa de chamar a atenção e o reconhecimento da profundidade existente no ensino e no desenvolvimento de um programa que focalize a bengala como recurso para a realização de um determinado percurso e tenha no deslocamento o eixo desta atividade. É preciso pensar que no processo de OM não basta que o indivíduo vá de um ponto a outro no espaço, mas como ele alcança estes pontos e quais serão as repercussões motoras, emocionais e psicossociais destas mudanças.

Geralmente, os cursos que capacitam os professores para o desempenho de funções junto à pessoas com deficiência visual, nas diferentes faixas etárias, apresentam um conteúdo programático diversificado, no qual poucas horas são dedicadas à tomada de conhecimento de processos tão específicos e capazes de desencadear reações na mudança da qualidade de vida de uma pessoa. Estes cursos, na maioria das vezes,não ultrapassam a carga de quatrocentas horas para a aprendizagem do Sistema Braille, da Orientação e Mobilidade, Das Atividades da Vida Diária, do Sorobã, da Informática e das abreviaturas e outras sinalizações, por exemplo. Aliando-se esta superficialidade nos conhecimentos ao desconhecimento específico da motricidade humana, não resta dúvida do quanto de responsabilidade e criatividade estamos exigindo e sobrecarregando aquele profissional que detém outros saberes, mas não o do movimento humano.

O ideal seria a formação de equipes onde a inter e a transdiciplinaridade se constituísse para que ações fossem desencadeadas com competência, confiança e responsabilidade, evitando ao máximo o surgimento de percalços e dificuldades oriundos da nossa omissão ou do nosso desconhecimento. Está claro que todos, ou pelo menos a grande maioria, dos profissionais não habilitados na área do movimento humano desenvolvem o seu trabalho em Om com a maior boa vontade em auxiliar e contribuir neste processo de aprendizagem da pessoa cega, no entanto, há situações em que boa vontade não é suficiente e é preciso complementá-la ou embasá-la com saberes próprios de uma profissão.

3 Sugestões para o ensino de uma nova habilidade motora

Em continuidade às propostas de desenvolvimento motor trazidas por Galahue e Ozmun (2005), sugere-se que os aspectos abaixo assinalados sejam analisados e considerados para o planejamento de um programa de OM, sendo simplesmente agregados a outros aspectos fundamentais já existentes ou reformulados dentro das necessidades e possibilidades do indivíduo, da tarefa e do ambiente.

OU FECHADA, RUDIMENTAR OU REFINADA, DISCRETA, SERIADA OU CONTÍNUA, E DE ESTABILIDADE, LOCOMOTORA OU MANIPULATIVA).

DA HABILIDADE CONTROLADOS).

4 Conclusão

Muitas pessoas cegas ou com baixa visão, para além da sua idade ou gênero, têm suas capacidades e habilidades motoras para o manejo e uso da bengala atrasadas por diferentes causas - por exemplo, limitadas oportunidades de realização de atividades independentes e autônomas, do ensino deficiente ou ausente e da pouca ou nenhuma motivação ou encorajamento pelos seus familiares e profissionais. No entanto, somente com a prática regular destas habilidades é que elas serão aprimoradas desenvolvendo-se a resistência, a força, o tempo de reação, a coordenação e a velocidade de movimento, entre tantos outros benefícios, tornando possível que o usuário da bengala tenha melhor nível de desempenho e mais êxito e eficiência em seus deslocamentos e orientações no espaço.

Contudo, é imprescindível a focalização de que o sucesso do ensino das estratégias do manejo e uso da bengala será alcançado pela identificação das condições limitadoras ou facilitadoras do desenvolvimento humano também nos seus aspectos motores. Além disto, é importante a consideração de que o ensino tem como base a redução dos obstáculos e dificuldades para a aprendizagem, ampliando as condições facilitadoras para uma apreensão e aprendizagem real de habilidades e maneiras de solução de dificuldades e administração de problemas.

Não basta ensinar ao aprendiz formas e modos de realização de uma determinada habilidade: é preciso dar a esta habilidade e ao modo de obtê-la e conduzi-la um significado e o incentivo para sua aplicabilidade em outros contextos, libertando a pessoa cega do seu desconhecimento das competências motoras e psicossociais disponíveis.

Bibliografia:

CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver com ela. São Paulo [s.n.] 1968.

GALAHUE, David L.; OZMUN, John. Compreendendo o Desenvolvimento Motor. Phorte Editora, 3ª ed., 2005, 585p.

HAYWOOD, Kathleen M.; GETCHELL, Nancy. Desenvolvimento Motor ao Longo da Vida - 3.ed, 2004, 344 p.

HOFFMANN, Sonia B. Orientação e mobilidade: um processo de alteração positiva no desenvolvimento integral da criança cega congênita - estudo intercultural entre Brasil e Portugal. Porto Alegre, 1998. xiv, 182f. il. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Educação Física. Mestrado em Ciências do Movimento Humano, 1998.

PAPALIA, Diane E. et al. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: ARTMED, 2000, p.25-7.

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]


VOLTAR À PÁGINA PRINCIPAL