1. Perda na percepção visual do agradável.
No estudo dessa perda devemos notar a chocante diferença entre a atitude, pelo menos a atitude verbal, da pessoa dotada de visão quando encara estes aspectos da cegueira aquela das pessoas que tornaram-se cegas. Aquelas quando falam e escrevem sobre o problema freqüentemente mencionam algo como: "nunca mais contemplar as faces maternas - nunca mais ver o próprio lar aninhado entre árvores". No entanto a pessoa que perdeu a visão raramente faz menções desta natureza.
Várias são as possíveis interpretações da incapacidade que tem a pessoa que ficou cega em discutir minuciosamente esta perda. Mas, se formos tentados a pensar que isto acontece por não ser esta perda considerada vital, basta consultarmos depoimentos de pessoas que recuperaram a vista após anos de cegueira. De um modo ou de outro, várias vezes declararam: "a coisa mais maravilhosa foi ver minha esposa e meus filhos novamente" ou "a maior de todas as impressões foi, ao virar a esquina da minha rua, pela primeira vez em anos, ver a casa na qual vivo há tanto tempo". Isto sugerirá uma perda insignificante? Ao contrário, sugere uma perda tão grande que tem sido impossível traduzi-la em palavras.
O que analisamos aqui é a perda da recepção visual (do abranger) de um objeto, no qual quem perdeu a visão, anteriormente encontrava prazer. Este objeto pode ser um quadro na sala de visita - o qual, nem num esforço de imaginação, alguém classificaria de lindo, ou uma peça de arte religiosa completamente desgraciosa - completamente disforme que, no entanto, simboliza algo para ela. Poderá ser ainda o "sorriso materno", apesar de ser o de um rosto comum ou do mais delicado de todos, ou então "seu lar aninhado entre árvores", mesmo que seja uma monstruosidade arquitetônica, para ela será o mais acolhedor de toda a redondeza. O valor intrínseco existente nestas coisas é que a encanta - é este prazer especial que está agora perdido.
Neste sentido, também, poderão ser objetos agradáveis, por exemplo, o tráfego de uma cidade, a velocidade dos novos carros, pessoas circulando numa estrada próxima, carneiros pastando, as cores de uma vitrine, a corrida de um coelho ou o galope de um belo cavalo. Em qualquer caso, a perda é proporcional ao prazer que o indivíduo encontrava ao olhar estas coisas.
Esta perda poderá ser de aspecto normal dentro do prazer "sensível" e "espiritual" (1) a visão de um homem elegante para uma mulher e a de uma linda mulher para o homem, ou poderá estar no campo de prazeres pecaminosos e anormais aonde as satisfações eróticas se desencadeiam?
Ou, voltando para o normal e isento de pecado - o objeto de prazer pode ser o próprio eu. O prazer inocente (e algo fútil) que muitos sentem ao se olharem no espelho está terminado. O ulterior prazer - mesmo sem o espelho - da visão consciente do próprio corpo, uma percepção que na maior parte das vezes é inconsciente e que provavelmente existe em nós desde o dia em que fizemos a primeira grande descoberta: de que aqueles dedos, ao pé do berço, nos pertenciam - tudo isto está perdido e pode ser incluído nesta perda da percepção visual de um objeto agradável.
Alguns incluiriam também aqui a perda do prazer na visão receptiva, mas eu não creio que tal prazer exista nos sentidos da visão e audição.
Não obstante, devemos considerar a perda imediata do prazer que sentimos em certas ocasiões na presença da cor, forma ou movimento. Este aspecto particular diz respeito não só à reações múltiplas - emoções associadas aos dias de nossas primeiras impressões com a forma, cor e movimento, mas especialmente, com as ligadas ao nosso treino em avaliar e apreciá-las ou com o nosso "condicionamento" para evitá-las e fugir delas.
2. Perda da percepção visual do belo.
Esta é a perda da capacidade de abranger visualmente um objeto que é belo, a perda da percepção visual e do "embeber-se visualmente" no que é belo.
Nem todos que perderam a visão sentem esta perda; algumas pessoas não podem "morrer" para esta visão do belo, pois nunca viveram com ela. Mas, para aqueles que a sentem, isto será uma das mais graves conseqüências da cegueira.
Agora, toda a beleza experimentada através da visão, todo prazer que os inflamava e os fazia vibrar a simples presença do verdadeiramente belo, foi afastado. Defrontar-se com a beleza delicada ou majestosa de um objeto, saber que ele está ali na nossa frente, e, todavia ser incapaz de contemplá-lo, produz uma sensação diferente, uma dor sem prazer, somente com terrível frustração. Permanecer impotente enquanto outro ineptamente procura descrever com palavras inexpressivas algo belo - poderá realmente, ser fonte de sofrimento.
Os que têm visão fazem menção a esta perda mais freqüentemente do que a anterior. "Nunca mais ver o colorido de uma rosa, o esplendor do pôr do sol". O que se tornou cego raramente se refere a isto.
Esta é uma diferença de atitude difícil de avaliar. Talvez os que enxergam achem mais fácil falar sobre esta perda do que sobre as outras; talvez os impeça de considerar outros aspectos da cegueira sobre os quais não querem pensar. Ou possivelmente esta perda tenha sido tão explorada na literatura que os que possuem visão se consideram na obrigação de fazer referências ao fato. Mas por que a pessoa cega a menciona tão raramente? Será uma perda sem importância? Talvez a considerem tão óbvia que não há necessidade de lembrá-la. Talvez seja tão sobrepujada por outras, que desapareça. Possivelmente será uma perda insuportável. Entretanto, será mais provável que a verdadeira amargura desta perda seja sentida apenas por pessoas que possuem uma forte noção do belo que o sentirão menos ou mais conforme a ocasião, ou então, que represente uma impressão tão íntima e ligada ao coração que o fato de abordá-la em termos errados, com a pessoa errada, deprecie e macule seu significado, o que seria ainda mais doloroso.
Mas, seja qual for a razão, não há dúvida que representa uma perda grave à percepção individual e a apreciação visual do belo que existia anteriormente. Para muitos isto constituirá uma enorme limitação.
CARROLL, Thomas J. Cegueira: o que ela é, o que ela faz e como conviver
com ela. São Paulo [s.n.] 1968, cap.5.
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