A deficiência, na perspectiva de uma análise histórico-evolutiva, toma
diferentes concepções e representações dentro de um determinado contexto
temporal, cultural, social e filosófico.
Este posicionamento é facilmente exemplificado, se revisitarmos os diversos momentos da historicidade humana. Na sociedade primitiva, o nomadismo apontava para a necessidade de que cada indivíduo tivesse o máximo de autonomia para sua auto-proteção e colaboração com a sobrevivência da coletividade, abandonando-se especialmente os idosos e as pessoas com deficiência. A eliminação do corpo imperfeito, presente desde a sociedade espartana, era uma prática freqüente porque a imperfeição infringia os ideais de beleza, força e estética da época. Com o Cristianismo, o homem amenizou seu julgamento e concepção de deficiência: de pecadora e endemoniada, a pessoa cega, surda, paralisada, coxa ou deficiente mental tornou-se foco de caridade e auxílio fraterno. Com a Revolução Industrial, assim como os demais indivíduos nas diferentes condições de idade, gênero ou situação econômica, as pessoas com deficiência fizeram-se mãos-de-obra eficientes.
Posteriormente, o mundo vivenciou duas guerras mundiais. Mutilações modificaram corpos, impediram ou dificultaram percepções sensoriais, danificaram raciocínios. No entanto, neste momento muitas pessoas com deficiência não se deixaram estigmatizar com o rótulo de doentes ou inúteis, pois movimentos de revalorização da vida começaram a surgir e eles ousaram transgredir os preceitos vigentes, olhando-se desde uma perspectiva de possibilidades e de funcionalidade.
Processo semelhante de análise histórica da concepção e da visibilização da pessoa vivendo com AIDS pode ser exercitado, uma vez que desde a primeira notificação de infecção pelo HIV até aos dias atuais variadas expressões e manifestações vêm se constituindo em nosso discurso e em nossa relação com o outro social. Inicialmente, falou-se na existência de grupos de risco, confrontando promiscuidade e vitimização, forjando no indivíduo a categorização e reforçando nele sua tendência para o julgamento do outro e da sua expatriação para o abandono, marginalidade ou expiação. Mas repensares também surgiram e, então, começou-se a falar na existência de comportamentos de risco,avançando-se para a expressão situação de risco. Nesta condição, muitas pessoas também ousaram transgredir os valores vigentes e também conseguiram romper com a inflexibilidade moral, ética e emocional presente em muitas manifestações sociais.
Contudo, em ambas as situações, pessoas convivendo com a deficiência ou com a AIDS ainda vivenciam a discriminação, a morte social e o descrédito - sensações e sentimentos que potencializam-se quando estas duas condições estão presentes em um único indivíduo.
No Brasil, dados oficiais acerca do número de pessoas com deficiência em situação de AIDS ainda não são conhecidos, tampouco de pessoas deficientizadas por comprometimentos sensoriais ou motores em função da ação do vírus, de doenças oportunistas ou de efeitos colaterais da medicação. Entretanto a observação torna possível a afirmação de que, extra-oficialmente, é crescente a ocorrência de pessoas com deficiência infectando-se ou, então, pessoas com AIDS deficientizando-se . Convém ressaltar, contudo, que uma pessoa com deficiência ou com comprometimentos de ordem sensorial, motora ou intelectual não está mais propensa à infecção pelo HIV por ser alguém com deficiência, mas porque esta deficiência ou o modo como ela é administrada psicossocialmente, algumas vezes, desencadeia fatores que podem deixá-la mais exposta e potencializar sua vulnerabilidade ou suas vulnerabilidades.
Fatores potencializadores de vulnerabilidades em pessoas com deficiência
A observação atenta e o convívio cotidiano referente ao comportamento de diversas pessoas com deficiência e das (re) ações do outro social diante de pessoas com deficiência infectando-se com o vírus da AIDS ou deficientizando-se em função de doenças oportunistas ou efeitos colaterais da medicação anti-retroviral permitiram, de forma empírica, a compilação de alguns fatores que parecem potencializar vulnerabilidades em pessoas com deficiência, tais como:
- pouco ou fragmentado acesso à informação sobre sexualidade, doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; - freqüente visualização pelo outro social como um ser assexuado, imunizado e-ou não-transgressor do uso de drogas e outras condutas; - insuficiência de informações específicas e adequadas adaptadas às necessidades visuais, auditivas e intelectuais da pessoa com deficiência; - baixas auto-estima e auto-imagem; - restrição, em algumas situações, na planificação e na perspectiva das suas opções no ciclo vital; - pouca ou nenhuma valorização do seu corpo e da corporeidade; - dificuldade no estabelecimento de uniões estáveis; - forte dependência e necessidade da presença do outro social, sentindo-se muitas vezes em situação de constrangimento até mesmo para a negociação do uso do preservativo em suas relações sexuais; - dificuldade na construção da sua autonomia e independência; - freqüentes desvantagens social e econômica; - tendência à marginalização ou exclusão social; - pensamento crítico alterado em alguns casos; - facilidade em ser abusado ou violentado sexualmente; - dificuldade, falta de hábito ou desinteresse no acesso ao serviço de saúde (inclusive pela); - dificuldade do outro social em lidar com a diferença.
O conhecimento destes fatores de dimensionamento de vulnerabilidade ou de exposição da pessoa com deficiência torna-se importante na medida em que possibilita ao profissional:
- o estabelecimento , adaptação ou aperfeiçoamento de estratégias em todos os níveis de prevenção e promoção da saúde quanto a aquisição e desenvolvimento dos agravos causados pelo HIV/AIDS de modo compatível e adequado às condições sensoriais, motoras ou intelectuais; - a promoção da redução de danos, a partir de uma visão mais alargada desta concepção e - a não deficientização ou a não-potencialização da deficiência de uma pessoa.
Por sua vez, os fatores citados parecem ser resultantes de condições estruturais e representativas de uma vulnerabilidade institucional e social expressas por:
- carência, desarticulação e insipiência de diretrizes e políticas públicas direcionadas especificamente à acessibilidade desta população às informações adequadas e efetivas sobre saúde sexual e reprodutiva, prevenção de DST/AIDS, assistência e tratamento; - falta de informação de que a deficiência sensorial, motora ou intelectual pode desencadear fatores de ordem subjetiva, psicossocial e informativa na própria pessoa ou no outro social que, algumas vezes, a deixam mais exposta a agravos, potencializando sua vulnerabilidade; - não-instrumentalização da grande maioria dos profissionais da Saúde e da Educação para lidar com a deficiência, gerando-se entraves comunicativos para a adesão a programas sobre saúde sexual e reprodutiva, testagem e tratamento da AIDS por estas pessoas.
Tais fragilidades observadas no âmbito das estruturas institucionais e sociais repercutem negativamente na interação com a pessoa comprometida motora, sensorial ou intelectualmente ao ponto de todo um processo de interlocução transformar-se como deficitário, acarretando constrangimentos e confusão entre os interlocutores de uma determinada ação. Por sua vez, através de um processo cíclico e cumulativo, o imobilismo pode instalar-se ou, então, serem adotadas condutas e atitudes de improviso, afastamento, insatisfação e não solução do problema.
Conclusão
O conhecimento do aumento crescente de casos de pessoas com deficiência infectando-se com o HIV ou deficientizando-se como conseqüência de doenças oportunistas ou paraefeitos da terapia antirretroviral sugere, de forma empírica, que o movimento da deficientização possa ser agregado aos fenômenos da interiorização, feminização e pauperização da epidemia da AIDS.
Todas as pessoas apresentam, em maior ou menor proporção, vulnerabilidades resultantes da estruturação pessoal, institucional ou social e, sem razão alguma para ser ao contrário, as pessoas com deficiência também vivenciam estas fragilidades, as quais parecem ser potencializadas por diversos fatores de ordem objetiva e subjetiva, mantendo-as muitas vezes ancoradas na invisibilidade de suas reais necessidades.
Contudo, as manifestações de alguns profissionais das áreas da educação e da saúde quanto ao desconhecimento, conhecimento fragilizado ou receio do estabelecimento de condutas ou procedimentos de comunicação com pessoas com deficiência constituem, ainda hoje, um alarmante sinalizador de que a realização de ações resolutivas e producentes do conhecimento precisam ser urgentemente agregadas ao processo de (in) formação destes profissionais, pois assim estaremos contribuindo efetivamente para o enfrentamento e a redução do preconceito, da discriminação e da violência. Além destes ganhos sociais, com a apropriação do conhecimento na área da deficiência, o profissional torna-se também um agente facilitador e potencializador da adesão da pessoa com deficiência em programas e ações de educação em saúde, provocando uma possível redução do índice epidemiológico de doenças, situações traumáticas, abusamentos e agravos incapacitantes.
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