A SOPEIRA

   Escrito por Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, março de 2011.

Aqui em casa tem uma sopeira. Enfeita a prateleira de um móvel um dia chamado cristaleira. Coisa bonita de se ver! É branca com detalhes rosados e filetes dourados nas bordas; grande, de porcelana e antiga... comprada quando minha mãe era noiva. Faz muito tempo isto. Digamos que a sopeira é do século passado. Sim, do século passado. Por que, vocês não são do século passado? Como... as pessoas deste século ainda nem completaram quinze anos! Somos até do milênio passado, acordem.

Por ela, muitas sopas se deixavam ser servidas para aquecerem corpos e almas durante minha infância. Sopas de festa, de comemorações, de todos os dias. Sopas de inverno e de verão. Lembro daquela de ervilha com frango desfiado, noz moscada e massa feita em casa. Só de pensar, sinto água na boca. Não consigo imaginar uma sopa de pacote violentando as frágeis paredes daquela sopeira. Acho até que ela sentiria-se como em um estupro culinário e sofreria um processo de rejeição, desfazendo-se em mil pedaços!

Mas hoje, sopas ou caldos não encontram mais o seu lugar nesta sopeira. Ela está impávida e serena, apenas decorando o ambiente como uma recordação feliz da minha mãe e da minha infância. Tenho percebido que muitas pessoas tem este hábito de usar antiguidades para adornos. Um dia, fui à casa dos pais de uma amiga e encontrei no balcão da pia do banheiro um penico com flores. Me contaram que este penico era de porcelana inglesa e pertenceu ao avô materno. Achei interessante e criativo. Por falar nestes assuntos relacionados à higiene, recordo de uma vez ter recebido de um amigo um livro enrolado em tiras de papel higiênico, por ele não ter nenhuma outra embalagem. Educada, recebi o livro e retribui o presente: bombons devidamente esparramados no fundo de um penico de plástico, com tampa e tudo - daqueles tipo troninho. Ele levou o maior susto!!!

Mas voltemos à sopeira. Menti para vocês ao dizer que ela agora somente enfeita a sala. Sua função, embora um pouco distanciada da original, é também de abrigar, de acolher, de guardar papéis, botões, termômetro, clipes, moedas antigas e atuais, elástico, prendedor de roupa, tesourinha de cortar unhas. Meses atrás, escarafunchando nela, achei uma peça de dominó. O jogo inteiro sumiu, mas ela sobreviveu. Havia também dois apitos, um nariz de palhaço, um pequeno canivete, um cadeado de mala, duas bolinhas de Natal e uma roldana pequena de cortina. Como foram parar lá? A resposta é muito simples: não sabia onde guardar e não estava disposta a caminhar um pouco mais para alcançar uma gaveta vazia, eternamente vazia.

Preguiçosa? Concordo com vocês. Mas quem não possui um quê de preguicinha, uma leve sensação de entorpecimento dos músculos e dos neurônios no momento de fazer o que se deve, mas quando não se quer? Huumm... vocês não vão querer que eu acredite que ninguém nunca aqui varreu a sujeirinha para baixo do tapete ou para trás da porta; deixou a toalha de banho molhada caída no chão e depois santamente falou que ela escorregou do suporte; comeu banana para não pegar uma faca e descascar o abacaxi, pelo qual sonhava em comer há tantos dias; saiu de camiseta e bermuda porque daria muito trabalho ir até ao armário escolher uma roupa maneira - mesmo porque a bermuda e a camiseta já estavam na cadeira, dando sopa. Sopa? Rápido, voltemos à sopeira.

Pois é... talvez seja assim que o nosso cérebro encerre a sua carreira: transformado em uma sopeira. Ao longo da vida já encontrei, e ainda tenho encontrado, pessoas que deixam de lado, com o tempo e o cansaço, as funções principais deste requinte da engenharia corporal e o usam para guardar futilidades; recordações; sentimentos e pensamentos maltratados pela mágoa, pelo melindre, pelo orgulho; alegrias da infância, da juventude, da adultez, da velhice; sonhos já gastos de tanto terem sido sonhados; sucessos de projetos e expectativas realizados com prazer; a vida, saboreada ou simples e mecanicamente engolida.

Sabemos que cada objeto tem a sua função, o seu papel, o seu significado. A cadeira é usada para sentar-se, a bola serve para o jogo, o sapato é colocado para proteger o pé. Mas há quem use a cadeira como escada, a bola como enchimento do panção do Papai Noel, o sapato para prender uma porta e evitar seu fechamento. Isto, chama-se criatividade, encontrar novas soluções para problemas e desafios que não podem ser resolvidos com a funcionalidade original de um determinado bem material.

Entretanto, me parece que estas transformações podem ser feitas com sopeiras, vassouras, tijolos, chapéus, guarda-chuvas, roupas e tudo o mais sujeito e subordinado ao poder da criação e da recriação. mas com o cérebro a conversa é diferente: o percebo como a intermediação da inteligência e do próprio ato criativo, e não como um mero reservatório dos acontecimentos passados.

Portanto, pessoal, não o deixem atrofiar, não permitam que ele se converta em uma sopeira modificada e lembrem-se de que nem sempre recordar é viver uma vida sadia.


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