O CASO DO CHOCOLATE QUENTE

   Escrito por
   Sonia B. Hoffmann
   Porto Alegre, junho de 2011

Certo dia, fui ao shopping comprar um presente. Passando pela praça de alimentação, resolvi tomar um chocolate quente. Era inverno e o frio intenso: sentia até as unhas congeladas.

O recipiente trazido não era propriamente uma xícara, mas uma caneca dos tempos da minha avó. Que delícia sentir aquele calor nas minhas mãos! Um prazer quase hormonal tomo conta de mim e, com toda voracidade, dei o primeiro gole. A sensação foi neutralizante, o mundo parou, o tempo escorreu pela ampulheta abaixo, minhas células ficaram impactadas e um silêncio tomou conta do meu ser como a calmaria que antecede as grandes explosões, as fortes erupções.

Aquele gole entrou rasgando, destruindo floras e faunas esofágicas, estomacais e por onde mais passasse, me fazendo colocar fogo pelas ventas do mesmo jeito quando comi um tal cachorro-quente com molho duplo de mostarda megapicante - mas isto fica para outro caso, outras narrativas de episódios curiosos.

Cansado daquela corrida insana, o gole fez um pitstop na minha bexiga já atordoada com tamanhas reviravoltas, promovendo a mais profunda esterilização vista na face da Terra, uma assepcia magistral. O calor era tanto que eu ouvia as borbulhas do cozimento das pobres mucosas. Me sentia o próprio caldeirão da bruxa em noite de lua cheia, uma tocha humana. Aquilo só podia ser a internalização da morte de Joana D'Arc ou de Hestia, deusa do fogo e da lareira. Lareira!?! Isto, uma lareira. Eu me tornei uma lareira de carne e osso.

Labaredas surgiram por todas as entradas e saídas do meu corpo, deixando um rastro corrosivo. Involuntariamente, comecei a babar e fiz xixi: rosto, queixo, peito, coxas e pernas ficaram com escamações e queimaduras de terceiro grau. Eu, literalmente, cuspia fogo. Os pêlos espalhavam-se pelo chão não mais chamuscados, mas torrados mesmo, causando um cheiro nauseabundo.

Nuvens densas de faíscas e fumaça me envolveram e, aos poucos, se proliferaram, invadindo a praça de alimentação, todo o andar, todo o shopping, todo o bairro, a cidade, o Rio Grande do Sul inteiro e, quiçá, o Brasil mostrando ao mundo esta façanha em brados retumbantes de "FOGO!!!". E nem noite de São João era!

Ambulâncias, polícia e bombeiros foram chamados. Tudo em vão! As canalizações de gás arrebentaram violentamente e o estrondo foi ouvido nos confins do espaço sideral, tomando o rumo não de Alegrete mas da Via Láctea, ultrapassando os limites do lado oculto da Lua e entrelaçando-se com os raios do Sol. Que beleza! Eu, agora, iluminava o universo!

A América do Sul ficou empoeirada pelas cinzas dos cabelos, das roupas, das árvores, das casas, das estátuas, dos carros, das bugingangas atiradas pelas ruas. Todos tinham dificuldade para respirar. Máscaras de oxigênio foram distribuídas; dunas sumiram porque toda a areia foi usada para apagar o incêndio. Os rios secaram; os peixes já eram pescados assados; as vacas não davam mais leite, mas mingau; os milharais explodiram, gerando um novo fenômeno meteoronutricional: a aurora pipocal - uma espécie agrícola da aurora boreal. O hemisfério sul surtou e teve uma convulsão térmica.

Os meios de comunicação se desorganizaram. Jornais, rádios, televisões, computadores, redes sociais, iPods, iPeds, iDóis e tantos outros aiaiais entraram em colapso, uma verdadeira falência. e tudo isto aconteceu apenas porque pedi um chocolate quente chamado "NTC - Nero em tempos de crise".


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