UM NAMORO EM XEQUE
Bruna e Cláudio namoram há três meses. Eles se conheceram num ponto de ônibus, quando Cláudio perguntou a Bruna se ela precisava de algum tipo de ajuda, já que é cega. Bruna solicitou a ele que sinalizasse para o ônibus da linha 45, pois naquele lugar passavam 5 linhas de transporte coletivo. Cláudio informou que ela ficasse tranquila porque ele também iria pegar aquele mesmo ônibus.

Desde esse dia, passaram a se encontrar com bastante frequência - principalmente nos finais de semana.

Contrariamente aos outros rapazes que conhecera, Cláudio parecia não demonstrar preconceitos quanto a cegueira de Bruna, elogiando-a muitas vezes por sua determinação, independência e autonomia.

No entanto, com o tempo, Bruna passou a perceber que o comportamento de Cláudio modificava-se quando encontravam os amigos da Faculdade dele. Nessas ocasiões, ele guardava a bengala de Bruna ou pedia a ela que a deixasse dentro da bolsa, fazendo questão de ele mesmo a guiar da sua maneira, ou seja, não deixando que ela pegasse em seu braço, mas levando-a pela mão ou nela abraçado - sempre alinhada com ele e nunca com um passo atrás.

Desse modo, Bruna sentia-se muito insegura. Além do mais, ao passarem por uma porta ou por uma passagem estreita, Cláudio a colocava à frente dele e, assim, ela não tinha forma alguma de proteção ou de referencial, uma vez que ele a guiava pela cintura ou pelos ombros.

Bruna conversou com Cláudio sobre isso, mas ele justificou-se dizendo que as convenções culturais apontam que, a um homem, cabe o papel de proteger a mulher, resguardando-a pela vigilância dos seus passos. Assim, se ele fosse à frente dela, como poderia saber se Bruna não estaria passando alguma dificuldade?

Os dois jovens prosseguiram conversando sobre essa necessidade de anteparo por parte de Bruna, porém Cláudio apresentava forte resistência para uma mudança do comportamento organizado pelas orientações quanto ao papel masculino recebidas do seu pai.

No entanto, um episódio foi marcante no relacionamento que vinha se construindo entre Bruna e Cláudio.

Numa noite de calor, eles se encontram num barzinho com dois casais de amigos de Cláudio. Como sempre acontecia nesses momentos, Cláudio tratou de esconder a bengala de Bruna e, de novo, tornou-a totalmente dependente dele, inclusive para acompanhá-la até o banheiro. A frequência com que isso acontecia vinha deixando Bruna cada vez mais incomodada aponto de, naquela noite, ter decidido acabar com aquela situação de uma vez, aproveitando o questionamento de Márcia, uma das colegas de Cláudio.

- Ei, Bruna, você não usa bengala?

- Uso sim, por quê?

- Porque eu sempre a vejo sendo guiada pelo Cláudio e, por isso, pensei que você não gostasse ou não usasse a bengala.

- Ah, uso sim e gosto de usá-la... mas parece que o Cláudio não simpatiza muito com ela e pensa que a pode substituir a contento quando saímos juntos.

- Reparei também que o modo como ele guia é diferente daquele jeito que estou acostumada a ver. Sabe, Bruna, moro perto de uma associação de pessoas cegas, e elas sempre pegam no braço do guia e andam um passo atrás dele...

- Pois é, Márcia, esse modo é o correto! Já conversei com o Cláudio várias vezes sobre isso, mas ele insiste em me guiar do jeito dele, me deixando totalmente insegura. Cansei de avisar que isso um dia pode me causar algum acidente.

Luís, que estava prestando atenção à conversa entre as duas jovens, resolve também participar.

- E pode acontecer um acidente mesmo. Um dia, eu fiquei observando um casal como vocês, o rapaz enxergava e a moça não. Eles vinham caminhando pelo calçadão de mãos dadas e ela sem bengala. Notei que ela caminhava com um jeito inseguro: passos curtos, titubeantes... como se fosse esbarrar em um obstáculo a qualquer momento.

- E o que aconteceu, perguntou Mariana, uma outra jovem do grupo.

- Não deu outra: a moça não percebeu a descida do meio-fio, pois seu namorado não a avisou, nem teve tempo para ampará-la, e ela acabou tendo uma queda muito feia. A sorte deles é que não havia nenhum carro na rua naquela hora.

- Credo, gente, toda esta tragédia por causa de uma bengala?

- Mas não é só uma bengala, Cláudio, respondeu Márcia. Pelo que percebo, ela é muito importante e traz grandes benefícios para uma pessoa cega, mesmo quando ela está acompanhada.

- Ora, ela pode ser importante, mas por que a Bruna vai usar uma bengala quando eu mesmo posso cuidar dela? Para os outros dizerem que eu sou "frio" com ela só porque ela é cega?

- Cláudio, eu muitas vezes quero usar a bengala quando estou contigo porque não me sinto guiada com segurança...

- Se eu ficar indo sempre à frente, o que os outros vão pensar? Que estamos naqueles países onde a mulher segue o homem como se fosse sua escrava?

- O que é mais importante, Cláudio: o que os outros vão pensar ou a minha segurança? - retrucou Bruna.

- Que pensamentos preconceituosos, Cláudio, disse Mariana. Cada situação tem seu modo próprio de ser resolvido, não podemos agir sempre do mesmo jeito com tudo aquilo que surge.

- Com tantos preconceitos assim, Cláudio, vou pensar que a bengala e a minha cegueira mexem com alguns valores e sentimentos que te incomodam. Seria isso?...


Texto de Sonia B. Hoffmann e Eduardo F. Paes
Rio de Janeiro, janeiro de 2007

[PERMITIDA A DIVULGAÇÃO E A REPRODUÇÃO DESTE MATERIAL DESDE QUE CITADA A FONTE]


VOLTAR À PÁGINA PRINCIPAL