Por nenhuma brincadeira, Marquinhos e Dudu deixariam de lado o lanche gostoso, preparado por Cydéa:
- Hummm, adoro o bolo de chocolate que a mamãe faz, exclamava Dudu, já aprontando-se para outra mordida.
- E este sanduíche, então! Dá de mil a zero naqueles feitos pela Dona Fátima, na escolinha, falava Marquinhos, indeciso na escolha entre outro sanduíche, ou outra fatia de bolo...
- Vocês são dois comilões, meus garotos levados, disse Cydéa, sorrindo para aqueles rostinhos tão alegres.
Eles não podiam ver seu sorriso porque eram cegos, mas sentiam a segurança do seu amor e o carinho que a mãe lhes dedicava.
- Oh... o meu bolo caiu no chão!
- Agora não vai mais comer. Virou farelo no chão da cozinha, e a mamãe nem pode varrer, porque você quebrou o cabo da vassoura, cantarolava Marquinhos para o irmão.
- Pode varrer, sim, cantarolou também Eduardo, feliz com a grande ideia que teve naquele momento. Eu, o Kid Dudu, vou transformar meu cavalo num cabo de vassoura!!!
Cydéa riu-se e resolveu entrar na brincadeira:
- Você é mágico, Dudu? Vamos ver se você consegue transformar sua bengala também em um disco voador!
- Muito fácil, mamãe. É só pegar a bengala do Marquinhos e juntar as pontas com a minha.
- É mesmo, Dudu, empolgou-se o irmão. Como elas têm um elástico dentro e dobram, a gente pode até fazer com que elas fiquem com jeito de redondo.
- Um redondo meio pontudo, né, Marquinhos!? Mas o que que que tem fazer um disco voador meio diferente? Depois, a gente pode pedir pra Olívia deixar ele bem bonitão com a sua bengala mágica, dizia Eduardo, vibrando com suas brilhantes ideias.
A mãe ouvia satisfeita e via todas aquelas imaginações dos filhos sendo colocadas em prática, compreendendo não somente que elas eram próprias da sua idade, mas também que a bengala já estava fazendo parte da rotina deles. Na mente de Cydéa, surgiam as palavras de Rosane, a professora de OM que trabalhava com seus filhos gêmeos:
"Dê bengalas para os meninos, Cydéa. Deixe que eles brinquem com elas. Aos poucos, eles irão perceber que bengalas têm outras utilidades e funções. Naturalmente, elas farão parte do esquema corporal deles, e a aceitação do seu uso na orientação e na mobilidade irá acontecer de forma mais tranquila e sem mitos, tanto por parte do Marquinhos e do Dudu como por você".
Foi difícil para Cydéa tomar a decisão de presenteá-los com as bengalas, mas os depoimentos e as conversas com as outras mães de crianças também cegas, além dos encontros com profissionais habilitados, a encorajavam cada vez mais:
- Minha filha, com cinco anos, assim como o Dudu e o Marquinhos, ganhou do padrinho uma bengala. No início, ela só brincava com a tal bengala, e eu morria de medo! Entrava em pânico somente em pensar que um dia Melinda a usaria para ajudá-la em suas caminhadas. Porém os dias passaram e com eles meus medos, porque, com as brincadeiras de Mel, eu mesma compreendi o quanto ela se divertia e se tornava mais segura em seus deslocamentos.
- Foi ótimo apresentar a bengala para Rodrigo desde pequeno. Ele tinha quatro anos quando meu marido e eu começamos a incentivá-lo, com a orientação da Rosane, a incluir a bengala em seus brinquedos. Um dia, no parque, estávamos sentados observando Rodrigo brincar com seus amigos, quando percebemos que ele já a usava à sua frente para não se bater ou tropeçar.
- Lembro sempre daquele dia. Eu estava lavando a louça, quando olhei pela janela da cozinha. Carlos, meu filho de dez anos, tinha dado para Gustavo um galho de árvore. Achei aquilo estranho, mas fiquei observando. Ele mostrou para o Guga, que agora tem seis anos, como colocar este galho à sua frente, com a ponta no chão, e juntos correram para a piscina. Assim, ao chegar à beira da piscina, Guga não iria mais ficar assustado ao cair na água, porque já teria percebido, antecipadamente, que estava perto dela. Decidi então dar para meu filho uma bengala, e foi uma festa só!
- Eu não quis dar nem permitir que Letícia tivesse uma bengala quando ela era pequena. Achava que, dando uma bengala a ela, eu estaria incentivando-a a sair sozinha pela rua já com quatro anos. Imagina uma criança cega no meio deste trânsito todo!Me enganei muito, pois uma bengala para uma criança cega não é exatamente para ela sair porta a fora, andando e cruzando ruas. Esquecia que, principalmente, as crianças brincam no pátio da casa ou da escola; caminham pelos corredores do edifício para irem no apartamento dos amiguinhos; passeiam e brincam nos parques com seus familiares... Não querem ficar o tempo todo agarrados por nós, presos em nossa mão. Agora que Letícia tem dezesseis anos, está sendo uma dificuldade para que aceite a bengala em sua vida. Ela sente-se estranha com uma bengala na mão e diz que esta bengala chama muito a atenção para a sua cegueira.
Com tudo isso e pensando no futuro de Dudu e Marquinhos, Cydéa sentiu-se fortalecida e, num ensolarado 12 de outubro, deu para cada um de seus filhos seu novo brinquedo, que mais tarde se tornaria a extensão dos seus braços, pernas e sentidos para protegê-los e orientá-los em seus deslocamentos pelo ambiente.
Hoje, Marcos e Eduardo são dois adultos independentes, não percebendo-se como vítimas da cegueira ou reféns de olhos que enxergam para decidirem sobre suas idas e vindas.
Texto de Sonia B. Hoffmann
Porto Alegre, maio de 2009
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