Colocadas lado a lado, a colher e a bengala branca podem não apresentar,
para muitas pessoas, uma relação sequencial e funcional entre si. No
entanto, a criança que (con)vive com a cegueira será extremamente
beneficiada, em diversos aspectos, com o manejo de ambos os objetos ou
instrumentos.
Entretanto, a disponibilização destes objetos para seu uso pela criança cega, na fase inicial da infância, é ainda questionada e prorrogada pela grande maioria das famílias, especialmente por quem exerce a função materna, dificultando o desenvolvimento de habilidades motoras e psicomotoras para a alimentação e a locomoção independentes.
Assim, este artigo tem a proposta de estabelecer a correlação presente entre o uso da colher e da bengala no cotidiano da criança cega, a partir de condições motoras-perceptuais e funções intelectuais análogas, abordando-se a colher como instrumento de manejo prévio ao uso da bengala.
A colher e a bengala como instrumentos de exploração do espaço
Uma colher e uma bengala branca são, para a criança cega, ferramentas manuais de ação para a realização de um trabalho que pode ser feito próximo ou distante do seu corpo com maior ou menor êxito, de acordo com a habilidade de manipulação manual desenvolvida pela criança (Cutter, 1992). Desse modo, como sugere o autor, a colher pode ser considerada a precursora da bengala, pois ambas as ferramentas gerenciam o espaço: a colher, o espaço do prato; a bengala, o espaço do chão.
Inicialmente centrada em si e gradativamente abrindo-se ao mundo, a criança cega observa e recolhe do seu ambiente informações que oportunizam a base de formação de um conjunto de habilidades motoras e psicossociais fundamental para sua construção, enquanto sujeito, e para o seu desenvolvimento, enquanto corpo. Para tal, será preciso que aconteça a inclusão de instrumentos mediadores, os quais servirão a ela como extensão do membro superior, estruturando-se e organizando-se mais rápida e praticamente o seu entendimento e conceituação do mundo e das relações existentes neste mundo que a envolve.
Nesse sentido, a manipulação de uma colher pela criança cega, tanto para a realização de atividades funcionais deste objeto quanto para alguma outra atividade lúdica, à qual o objeto colher serve aos propósitos infantis, desencadeia o desenvolvimento de habilidades manuais as quais serão transferidas para o manuseio da bengala branca a partir da funcionalidade desejada.
Sem a possibilidade de manusear a colher para sua alimentação independente, ela perde a oportunidade de vivenciar e construir seu conceito de ritmo, frequência e intervalo de tempo necessários no êxito da ação. Entre outros benefícios, ela também perde a oportunidade de constituir sua matriz de análise e de elaboração das concepções de profundidade, lateralidade e de volume.
Estas aprendizagens são naturalmente aplicadas entre um objeto e outro. Com a manipulação e o manejo da colher e da bengala, a criança desenrola e evolui os conceitos e concepções para o campo do seu saber. Deste saber, desde que não seja impedida, acontece uma evolução para o campo da sua interação com o ambiente, transformando o saber e a interação, e todas as consequências deste saber e desta interação, como ferramentas e estratégias imprescindíveis ao alcance dos seus propósitos. Assim, por exemplo, seus conceitos de lateralidade e ritmo deslizam para o uso de um e de outro objeto, natural e circunstancialmente, com um ponto de intersecção na autonomia da ação e do produto desta ação: ou seja, na autonomia da alimentação ou da locomoção e no produto gerado por tais ações.
Com a manipulação livre da colher, a criança cega desenrola sua competência motora de preensão e desenvolve habilidades de sustentação, equilíbrio, coordenação e orientação espacial, organizando os movimentos e (re)conhecendo as similaridades e alterações captadas pela percepção tátil quando uma ação é mediada por um instrumento. A frequência e a continuidade do uso da colher viabilizam o refinamento gradativo das competências e habilidades motoras e psicomotoras, estruturais ou funcionais.
Segura e sustentada por um conhecimento internalizado e estruturado, a criança cega desliza este saber do uso bem sucedido da colher para uma utilização mais adequada e racional da bengala, uma vez que ela recolhe e decodifica com maior precisão e com menor necessidade de estímulos a informação do ambiente que sua bengala lhe oferece em função de já ter internalizado a dinâmica da percepção tátil-cinestésica por via indireta.
A forma de preensão destes objetos toma, evidentemente, sua diferenciação desde o refinamento da motricidade da criança desenvolvida na dimensão ergonômica do objeto propriamente dito. Todavia, igualmente nas preensões palmar e digital, tanto da colher quanto da bengala, a criança cega exercita suas potencialidades rumo à autonomia e à independência não apenas motora, mas cognitiva e psicossocial porque o alimentar-se e o locomover-se por suas próprias habilidades produz, no mínimo, efeitos positivos sobre sua autoestima e interação social.
O uso da colher e da bengala como estruturantes de relações
psicocognitivas e psicossociais
A estruturação de relações psicocognitivas e psicossociais a partir do uso da colher e da bengala encontra sustentação em Leonhardt (1962). Segundo essa autora, a edificação global da criança cega, inclusive o seu desenvolvimento motor, evolui sempre que houver a base de um bom desenvolvimento do ego, o qual, por sua vez, desenvolve-se sadiamente a partir de ótimas sensações de competência e eficácia.
Nesse sentido, a criança cega precisa que suas necessidades fundamentais de segurança e autonomia progressiva sejam potencializadas e respeitadas pelo outro, ou seja, por aqueles que vivem e convivem com ela. Quando o outro social, responsável pela educação da criança cega, limita ou impede que ela manipule objetos ( a colher e a bengala, neste caso) não possibilitando a ela a experiência e a vivência continuada da ação, consideramos que ele não está restringindo somente sua possibilidade em desenvolver a habilidade de alimentar-se ou locomover-se com autonomia. Com sua superproteção, negação ou qualquer outro motivo emocional que sirva de barreira para este consentimento, está colocando também na trajetória da criança um sério entrave em sua construção como sujeito.
A restrição no uso direto da colher pode transmitir à criança cega uma dupla mensagem: que ela não seja capaz de encontrar, pegar e transportar o alimento à boca; que ela não seja capaz de construir sua independência e autonomia, nos diversos aspectos da vida, iniciando pela alimentação.
Relativamente a quem exerce a função do consentimento para o manuseio da colher, muitas leituras podem ser feitas sobre esta restrição. Entretanto, parece que a principal encontra-se no fato de muitas mães ou outros familiares não conseguirem olhar para a inabilidade da criança cega, como se inabilidades motoras fossem exclusivamente para estas crianças e não para todas as crianças com pouca idade.
Estas dificuldades consensuais e de entendimento geram frustração, passividade e descrédito para ambos os lados. Crianças cegas habituam-se à espera, ao isolamento e à perda da criatividade, não se tornando curiosas e abandonando seu instinto de investigação e de análise da relação dos objetos com o ambiente. Tudo isso a conduz à inércia e ao desapego, pois, desde cedo, nela já foi inscrita a incapacidade e, consequentemente, não encontra estímulos para uma socialização sadia. Na mãe e demais familiares, estes sentimentos se potencializam porque eles passam a relacionar-se com a criança como um ser impedido, vitimizado e multidependente, tornando-se então sequestradores de oportunidades de crescimento e evolução da criança. O simples ato de alimentarem a criança cega por eles próprios, o que inicialmente era feito com prazer e satisfação, pode tornar-se com o tempo uma obrigação e um transtorno. A criança não fica indiferente a este comportamento e à decodificação de tal sentimento, reproduzindo-se nela e reforçando-se os sentimentos de baixa autoestima, confiança e iniciativa, ou seja, instala-se um ciclo cumulativo e nocivo de sentimentos destrutivos.
Se para o manejo independente da colher muitos familiares têm dificuldade de aceitação, o que então esperar em termos da sua dificuldade em visualizar a criança cega manejando uma bengala?
O manejo e o domínio no uso da bengala não proporcionam à criança cega tão-somente a diversificação e a qualificação das suas experiências locomotoras obtidas através do exercício das suas habilidades motoras e cognitivas. Esta ação provoca o autoconhecimento e a vivência da dicotomia confronto-resolução, possibilitando o desenvolvimento da confiança e da segurança em suas competências e (re)ações corporais e intelectuais, bem como a constatação das suas limitações ou possibilidades frente ao ambiente.
Diante destas capacidades e habilidades, a criança cega passa a vivenciar e experenciar com mais frequência sua circulação no ambiente e, com isto, a oportunidade do conhecimento real e não apenas discursivo dos objetos, o conhecimento de (re)ações afetivas provindas dela e das demais pessoas e a qualificação da sua socialização em função da ampliação dos seus contatos sociais e culturais.
Conclusão
A oportunidade para o uso e manejo independentes da colher pela criança cega assume um papel de fundamental importância na aquisição de habilidades motoras manuais, uma vez que as sensações propioceptivas e cinestésicas da mão, seu tato e as formas de preensão permitem a esta criança estabelecer limites de espaço mediante a percepção do contorno, da textura, da consistência e do volume dos objetos, substâncias e demais composições.
Essas competências, no momento do uso e manuseio da bengala, possibilitam à criança cega a transferência de conhecimentos e a facilitação no processo de decodificação das informações táteis obtidas por mediação deste instrumento, ampliando e agilizando os benefícios trazidos por uma locomoção independente e autônoma.
Desse modo, uma fundamental relação entre colher e bengala toma forma e percebe-se nesta relação a constituição de um conjunto de aquisições de habilidades motoras, cognitivas, sociais e afetivas que autorizam a criança para a passagem da exploração do ambiente do prato para a exploração do ambiente da rua.
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FONTE]